sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Resistência ou adesão à «causa da humanidade»? Os setembristas e a supressão do tráfico de escravos (1836-1842)*


João Pedro Marques

No Verão de 1839 o Parlamento britânico aprovou um bill proposto por
Lord Palmerston pelo qual se concediam aos vasos de guerra da Royal Navy
poderes para interceptar e, eventualmente, apresar quaisquer navios com
bandeira portuguesa (e sem bandeira) que transportassem escravos ou que
estivessem equipados para fazer esse transporte; pelo mesmo bill adjudica-
vam-se os navios que viessem a ser capturados aos tribunais de marinha
britânicos e decretava-se que todos os procedimentos judiciais posteriormen-
te intentados contra os captores ficariam nulos e improcedentes. A violenta
medida causou consternação no Brasil e um verdadeiro levantamento de
fervor nacionalista em Portugal. Mas, na perspectiva do Foreign Office, que
o Parlamento britânico acabaria por perfilhar, o bill parecia ser a forma mais
razoável de pôr fim ao «insolente desprezo dos tratados e convenções» que
os governos portugueses tinham mostrado até então1. De facto, Portugal comprometera-se logo em 1810 a abolir gradualmente o comércio de escravos e a cooperar com a Grã-Bretanha na «causa da humanidade». Esse compromisso inicial foi solenemente reforçado e ampliado pelo tratado de 22 de Janeiro de 1815 (que aboliu o tráfico a norte do equador) e pela Convenção Adicional de 28 de Julho de 1817 (que instituiu o direito de visita e criou comissões mistas para julgamento sem apelo dos navios negreiros), mas os governos portugueses, interessados em prolongar tanto quanto possível o fluxo de escravos para o Brasil, não executaram as medidas então estipuladas e abstiveram-se de colaborar nas tarefas de supressão, não enviando vasos de guerra para as costas de África e não participando senão de forma episódica nas actividades judiciais das comissões mistas.

Por razões internas e externas que não cabe desenvolver aqui, a pressão abolicionista britânica, um pouco atenuada na década de 1820, reapareceu


em força a partir de 1834. Portugal era chamado a cumprir finalmente aquiloa que se comprometera no passado, ou seja, a abolir totalmente o tráfico, a cooperar com o governo britânico nas tarefas de combate aos infractores e a conceder, através de novo tratado, maiores poderes aos cruzadores ingleses.


Foi no contexto dessa pressão que, de forma unilateral, Sá da Bandeira fez publicar o decreto de 10 de Dezembro de 1836, que proibia inteiramente a exportação de escravos dos territórios portugueses. Paradoxalmente, foi a partir desse momento que maiores dificuldades se levantaram à concertação abolicionista anglo-portuguesa. Porquê? As razões oficialmente invocadas do lado setembrista foram as de que a Inglaterra exigia concessões indecorosas para a dignidade da Coroa, concessões que fariam perigar o comércio e a segurança das colónias africanas. De impasse em impasse, com o bloqueio
das negociações, chegou-se a um ultimatum, depois ao bill de Palmerston e ao apresamento ou afundamento de dezenas de navios cobertos pela bandeira portuguesa2.


Com a queda dos setembristas e, também, com a saída de Palmerston do gabinete de St. James, os governos cartistas acabaram por operar a cicatrização das feridas e uma reaproximação diplomática que se saldou na conclusão do tratado anglo-português assinado em 3 de Julho de 1842. O acordo, inúmeras vezes antecipado e atacado pela esquerda, foi visto nesse sector como uma derrota das forças patrióticas, que levavam a peito a defesa dos interesses do país e não se curvavam ao estrangeiro, e, correspondentemente, como a vitória dos vendidos à Inglaterra e dos inconfessados interesses da «pérfida Albion». Nessa perspectiva maniqueísta, a resistência obstinada que Sá opôs ao tratado em 1836-1839 adquiriu a aura de grande página de patriotismo.
Completamente embrulhada nas roupagens nacionalistas da honra e da dignidade, essa visão das coisas, ainda hoje muito difundida, confunde a análise e mascara o núcleo da questão.CONTINUA...

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