quarta-feira, 17 de novembro de 2010

As colónias: da perda do Brasil à luta contra a escravatura

Adelino Torres

Três problemáticas estão no centro da política colonial do liberalismo a partir de 1820: a assimilação jurídico-administrativa das colónias ã metrópole, ideia integradora consagrada nas constituições liberais da primeira metade de Oitocentos; a luta contra o tráfico da escravatura, iniciada em 1836 por Sá da Bandeira, e o combate à própria escravidão enquanto sistema económico e social nas colónias.
As soluções encontradas revelaram-se inoperantes durante muito tempo e a legislação liberal, idealista e doutrinária, encontrou obstáculos por vezes intransponíveis.
Na verdade, a retórica da assimilação integradora escondia uma diversidade de situações cuja autonomia punha, de facto, em causa a soberania portuguesa; as leis contra o tráfico da escravatura eram inaplicadas devido aos interesses instalados nas colónias africanas e no Brasil; as medidas legais para implementar a abolição da escravatura não passaram, durante muito tempo, de meros princípios vazios de conteúdo por exigirem um estádio de desenvolvimento económico e social que aqueles territórios estavam longe de possuir e que Portugal não tinha condições de implementar.Até ao terceiro quartel do século XIX, a história colonial portuguesa pode talvez dividir-se, como alguns autores o sugerem, em cinco períodos. O primeiro estende-se do século XV a meados do século XVI. É o período áureo dos Descobrimentos, da abertura das rotas atlânticas até à índia, da dominação de pontos estratégicos nas costas da Guiné, do Congo, da África Oriental e da Ásia, em que a influência portuguesa chega às mais remotas paragens da Abissínia, costa da Arábia, Pérsia, Ceilão, China e Japão.
O segundo período, de meados do século XVI a 1640, caracteriza-se por uma decadência que provoca o desmoronamento do império da índia, a perda da independência nacional em 1580 e a consequente conquista, por outros povos europeus, dos territórios africanos sob tutela portuguesa.
O terceiro período vai da Restauração de 1640 ao governo do marquês de Pombal, no século XVIII. Portugal liberta-se do domínio espanhol e arrebata, das mãos dos Holandeses sobretudo, os territórios perdidos. De novo o ouro e as pedrarias do Brasil inundam o País, mas essa riqueza, que não beneficia nem a agricultura nem a indústria, é dissipada em luxos ostentatórios e em importações que vão empobrecendo a Nação, ao mesmo tempo que as grandes companhias coloniais soçobram uma após outra. A Companhia Geral do Brasil fecha as suas portas em resultado das manobras dos Jesuítas em 1720. A Companhia de Cacheu e Rios da Guiné, bem como a de Maranhão, pouco duram.
O quarto período começa com o governo do marquês de Pombal. Retoma-se a ideia das grandes companhias coloniais. Pombal funda a Companhia do Grão-Pará e Maranhão em 1755, combatida desde o início pelos Jesuítas, que só a conseguem arruinar em 1778 depois da queda do ministro. Surge a Companhia de Pernambuco e Paraíba e, em Moçambique, a Companhia dos Mujaos e Macuas, cuja actividade só irá durar três anos. Mercê do voluntarismo da política pombalina, parte do dinheiro do Brasil é aproveitada para criar fábricas e indústrias na metrópole. Em Angola, o governador pombalino Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho tenta, exemplo único, lançar uma indústria siderúrgica criando a fundição de Nova Oeiras. O seu projecto de modernidade, pioneiro em pleno século XVIII, não terá, porém, seguidores.Poder-se-ia talvez distinguir ainda um quinto período, que se alonga de 1777 a 1869, já na segunda metade do século XIX. São, segundo as palavras de Tomás de Almeida Garrett, «noventa e dois dolorosos anos» de «anarquia e corrupção». OsFranceses invadem Portugal, provocando destruições e pilhagens. A corte foge para o Brasil, o qual rende menos de metade do que antes das invasões francesas. O comando dos oficiais ingleses humilha o exército nacional. A guerra civil entre liberais e absolutistas arruína a Nação. A Inglaterra ocupa a ilha da Madeira e ordena à Companhia das índias o controlo de Goa. O tratado de 1810, assinado entre Portugal e a Inglaterra, abre o mercado brasileiro ao comércio inglês e vem completar esta série de calamidades para a economia portuguesa da época.
No plano colonial, todas as atenções estão, no século XIX, concentradas no Brasil. Da África, com uma ou outra excepção, ninguém quer saber. As exportações para as colónias diminuem mais de 90 %.
Em 1822, o Brasil, cansado da pilhagem colonial, que a presença da corte tinha agravado, proclama a sua independência. Finalmente, em 1825, terminada a ilusão de ainda recuperar aquele território, Portugal é obrigado a ratificar o tratado de reconhecimento oficial de um facto consumado. Apesar de as ligações comerciais com o Brasil se manterem, as circunstâncias dão agora um certo relevo ao que resta do «império colonial» em África, mas a metrópole não tem ainda plena consciência do que poderiam valer as colónias, com excepção de raros homens de Estado, como Lavradio e Sá da Bandeira. Para além da retórica oficial, é o entorpecimento que prevalece.
Depois desta breve síntese, importa caracterizar a política colonial do liberalismo entre a Revolução de 1820 e 1850. Que princípios a orientaram e que resultados obteve? Como explicar o desfasamento entre o discurso e os actos, entre a «vocação colonial» supra-histórica e os magros resultados obtidos, entre a generosidade das intenções proclamadas e a sórdida realidade de um colonialismo de servidão que se perpetua?
Falar de «quinhentos anos de colonização» não tem grande sentido. E uma perspectiva destorcida da realidade que não traduz o conhecimento do passado, mas deriva apenas de uma tentativa vã para o dominar. «A visão que ainda hoje predomina da história colonial portuguesa do século XIX resulta desse condicionamento», diz Valentim Alexandre {Origens do Colonialismo Português Moderno, p. 5).
Até ao século XIX, Portugal não constituiu o que se pode chamar com alguma propriedade um «império colonial», na medida em que os territórios integrados se resumiam a algumas parcelas da índia e a uma vasta área do Brasil. AlexandreLobato escreve acertadamente que nos territórios africanos havia apenas esferas de influência, na costa da Guiné, em torno de Luanda, no vale do Zambeze.
A colonização não ia além do comércio de permuta com os Africanos, no qual, aliás, eram estes que controlavam o essencial dos circuitos do comércio de longa distância no interior de Africa. Os Portugueses e outros europeus tinham uma presença nos entrepostos do litoral, a partir dos quais praticavam a troca directa com os povos do sertão e negociavam no tráfico de escravos para o Brasil e Cuba. O seu número era de facto escasso, o que levou muitos autores a afirmar que a sua influência em África foi tardia e quase negligenciável. Mas o problema da «influência» - ou, melhor, da «interinfluência» euro-africana - é mais complexo. É conveniente sublinhar, como já o fez Alfredo Margarido num ensaio exemplar (Les Porteurs: forme de domination et agents de changement en Angola: XVIIe-XIXe siècles), que a influência da penetração portuguesa em África não pode ser apenas medida pelo número de europeus presentes fisicamente no terreno. Ela depende também das mercadorias e bens que circulam entre a costa e o interior e que encerram, para além da sua utilidade imediata, a simbólica de uma apreensão do mundo feita de novas referências culturais. Esta gera dinâmicas desestabilizadoras que provocam mutações, positivas ou negativas, pouco importa agora. Os efeitos da arma de fogo, por exemplo, não podem ser vistos apenas pelo prisma da racionalidade tecnológica (europeia). Eles têm para os Africanos dos primeiros tempos a dimensão mágico-religiosa que resulta da anulação de tempo e do espaço. Antes de integrar a tecnologia, os Africanos tiveram, por assim dizer, de integrar a simbologia do objecto em si independentemente da presença física do Europeu.
Onde chega a mercadoria chega igualmente a influência do outro. Quer dizer, a mercadoria é um bem de uso, um bem de troca, mas também, diríamos, um «porta-voz» e um «agente de propaganda». Deste mecanismo subtil resulta o paradoxo do desfasamento entre o fraco povoamento branco até ao século XX e a indubitável influência que os Europeus - sobretudo os comerciantes quando portadores da mercadoria, note-se - têm junto dos potentados africanos da época, a qual resulta, porém, de equilíbrios delicados por vezes precários.
Mas a influência é biunívoca. Pode dizer-se que até ao fim do século XIX os europeus radicados em África integram com maior ou menor intensidade os valores das culturas locais. Gaspar Ribeiro Vilas fala dos portugueses do século XVI em Angola, que tinham «aceitado hábitos gentílicos, coisa corrente em colónias». Pedro Ramos de Almeida assinala que em 1858, aquando do falecimento em São Tomé de Isidoro Félix de Sousa (senhor de escravos), lhe sucedeu o seu irmão Francisco Félix de Sousa, que «o rei do Daomé investira em sua sucessão, na qualidade de xaxá. Era mais indígena do que português. Considerava-se vassalo do soba. Vivia à moda da terra». Era o chamado fenómeno da «cafrealização», que tantas dores de cabeça deu a governadores coloniais, como António Enes e Norton de Matos, e que provocou atitudes e palavras manifestamente excessivas.
De uma maneira geral, podemos dizer que a intensidade das correntes comerciais no sertão, mesmo quando a população branca era numericamente fraquíssima e a ocupação do interior praticamente nula, só pode ser explicada pela actividade produtiva e comercial dos Africanos, mesmo quando a «mercadoria» é o próprio homem. Isto parece contradizer a falsa imagem do Africano, mero actor secundário e passivo, despertado de uma espécie de «letargia milenária» pela actividade polarizadora da civilização europeia. O conceito de «colonização» é bem mais complexo do que o simplismo das dualidades ainda em voga por vezes sugere.
Mas, em termos gerais, políticos e económicos, é certo que até ao século XIX os europeus que frequentavam as costas de África representavam mais interesses privados do que interesses dos Estados. As regiões africanas, diz Henri Brunschwig, eram consideradas como «o túmulo dos homens brancos» e, para a Europa, a África não passou de um teatro de operações secundárias até meados de Oitocentos. A teoria da. colonização moderna só foi desenvolvida por Paul Leroy-Beaulieu em 1874 no seu livro De la colonisation chez peuples modernes, cujas reedições sucessivas a Europa inteira leu, confirmando a concepção ingénua de uma «colonização civilizadora».
A teoria da prioridade do descobrimento sucedeu a teoria da prioridade da ocupação (A. Morais de Carvalho), mas essa «ocupação» foi, nos territórios reivindicados por Portugal, puramente nominal. Só em 1840, por iniciativa de Sá da Bandeira, se estabeleceram em Moçâmedes os primeiros colonos. Mas esta e outras tentativas que se lhe seguiram no século XIX estiveram longe de obter o êxito esperado, porque a emigração continuou a dirigir-se para o Brasil.
Podemos talvez considerar que três temas principais estão no centro das preocupações coloniais do liberalismo oitocentista:• Uma maior integração dos territórios africanos e tendência para a assimilação nos planos jurídico e administrativo;
• A luta contra o tráfico de escravos, que mesmo depois da independência do Brasil continuava para aquele país;
• O reconhecimento oficial de que a própria existência da escravatura era um obstáculo decisivo para o desenvolvimento dos territórios africanos e bloqueava à partida qualquer política modernizadora.
Sobre o primeiro problema, o jurista Artur de Almeida Ribeiro escrevia em 1917: «O domínio colonial instalou-se logo dentro das primeiras constituições, muito à vontade, largamente presenteado com regalias teóricas, mas privado de vantagens práticas. Os textos de 1822 e 1826 nem mesmo revelam, por qualquer palavra, o carácter colonial duma parte do território da Nação, fundida no todo geral a que se aplicam as disposições destes textos. E o liberal silêncio, de que mais tarde falará Almeida Garrett, mas que traduzia, pura e simplesmente, uma notável tendência para a assimilação. A própria Constituição de 1838, conquanto estabelecendo já uma excepção ao regime anterior, estendeu às colónias a divisão metropolitana em províncias, consagrando a designação províncias ultramarinas, e falseando assim as noções positivas sobre o carácter especial desses territórios e o regime que mais lhe convém.» (In Antologia Colonial Portuguesa, p. 155.)
O Parlamento português, dominado por juristas pouco familiarizados com os problemas das colónias, embrenhou-se numa retórica abstracta e doutrinária, embora generosa, que nada tinha a ver com as questões de fundo nem garantia, de facto, os direitos de cidadania que às populações eram atribuídos na lei.
Na verdade, a «integração» e a «assimilação» jurídico-administrativa dos territórios africanos, idealmente proclamadas nos textos do liberalismo oitocentista, escondiam, na prática, o alto grau de autonomia de que beneficiavam todos aqueles que, na África Ocidental e Oriental, se enriqueciam à custa do tráfico de escravos, do capitão--mor ao governador, do comerciante branco, mestiço ou negro ao importador brasileiro que mantinha interesses em Angola, Moçambique, Cabo Verde ou São Tomé.
A segunda preocupação do liberalismo, personificada pela acção política de Sá da Bandeira em especial, foi a luta contra o tráfico de escravos.
Porém, também aqui a teoria difere de algum modo da realidade. E certo, como o sublinhou José Capela, que não há razões para duvidar da sinceridade e doempenhamento de Sá da Bandeira contra o tráfico e contra a própria escravatura como sistema económico. Mas o decreto de abolição do tráfico de escravos, datado de 12 de Outubro de 1836, não terminou com essa actividade, por não estarem reunidas as condições nem as autoridades disporem de meios materiais suficientes para fazerem aplicar a lei com todo o rigor necessário. Neste episódio, como em muitos outros da história colonial portuguesa, não há matéria para triunfalismos. Só algumas décadas mais tarde é que o tráfico chegou realmente ao fim.
As razões desta luta contra o tráfico da escravatura e também da inoperância que a fez arrastar--se, com desprestígio para Portugal, necessitam de ser melhor esclarecidas. A evocação do humanismo da Revolução de 1820, inspirada, segundo Silva Cunha, nos ideais da Revolução Francesa de 1789, não parece chegar para explicar as motivações profundas do movimento abolicionista português. A lentidão e a fragilidade dos resultados obtidos também não podem ser escamoteadas.
Na realidade, só depois da independência do Brasil é que o problema da abolição do tráfico da escravatura começa a preocupar seriamente o Governo de Lisboa. Enquanto o Brasil foi colónia, todos os benefícios que este comércio trazia à produção brasileira alimentavam o import-export português. Contudo, depois da independência daquele país latino-americano, começa a verificar-se que o tráfico servia a prosperidade brasileira sem vantagem directa para a economia portuguesa. «Então e só então é que se deu conta que se tratava de uma iniquidade que deixara a África na penúria», escreve José Capela (As Burguesias Portuguesas e a Abolição do Tráfico da Escravatura, 1810-1842, p. 66). A questão foi logo levantada nas Cortes pela Comissão do Ultramar em Abril de 1822. Esta verifica que de ora em diante o tráfico só irá favorecer os interesses particulares da burguesia brasileira, em detrimento da economia portuguesa. Quando a independência do Brasil foi, enfim, considerada irreversível, por volta de 1830, é que o movimento contra o tráfico da escravatura começou a tomar consistência em Portugal. Isso não foi apenas devido às pressões da Inglaterra - que apesar de tudo aceleraram o processo -, mas também devido ao aparecimento de interesses metropolitanos virados para as colónias africanas, distintos dos interesses brasileiros.Pode perguntar-se então por que é que o decreto de 1836 teve efeitos tão limitados e tardios. José Capela diz mesmo que ele «não só não extinguiu o tráfico como, de alguma maneira, o excitou». A causa pode talvez encontrar-se na complexidade dos elementos sociais e económicos em jogo.
A começar, no plano epistemológico, pelos conceitos utilizados na análise, sem a clarificação dos quais não podemos deslindar um emaranhado de dados empíricos. Com efeito, falar-se de «burguesia colonial» como equivalente a «burguesia portuguesa» só na aparência tem algum rigor. O conceito de «burguesia» aplicado ao espaço económico Portugal-colonias, como um todo não diferenciado, não explica nem a diversidade dos elementos em presença nem as contradições que lhe estão inerentes.
Por outras palavras, no que se refere ao século xix, é necessário distinguir entre «burguesia metropolitana» e «burguesia colonial», ambas comportando subdivisões complementares ou concorrenciais conforme a conjuntura histórica.
Podemos considerar talvez a burguesia metropolitana do século XIX como o conjunto de elites nos vários sectores da economia (agricultura, indústria, finança e grande comércio), cujos bens de raiz se encontram ou têm a sua origem na metrópole, que possuem propriedades, empregam mão--de-obra assalariada e movimentam capitais. Mesmo quando certos elementos dessa burguesia metropolitana mantêm um intercâmbio com as colônias africanas, tais ligações não são, em geral, mais do que uma das vertentes, se não mesmo o subproduto, da sua actividade principal na metrópole.
O conceito de burguesia colonial, em contrapartida, aplica-se aqui às élites possidentes instaladas nas colônias, empregando mão-de-obra escrava, servil ou, mais raramente, assalariada, com residência nos centros urbanos dos territórios colonizados e possuindo aí os seus bens de raiz, prestígio e influência, independentemente dos interesses ou haveres que eventualmente possam ter em Portugal (V. Adelino Torres, Colonização e Capital, a publicar).
No interior das burguesias metropolitana e colonial poderíamos ainda distinguir grupos coerentes, obedecendo a uma lógica própria, inseridos numa rede articulada de relações económicas e sociais. Vejam-se, por exemplo, incluídas na burguesia metropolitana, a burguesia industrial nascente e as poderosas burguesia agrária e burguesia mercantil. Repare-se ainda, dentro do mesmo sector, que os interesses da burguesia mercantil do Porto e da burguesia mercantil de Lisboaestão longe de ser coincidentes, tanto na questão colonial (o último quartel do século xix e o século xx fornecerão muitos exemplos) como noutras matérias. Por sua vez, a burguesia colonial tem, em cada um dos territórios africanos, características diferentes. Porém, no período do tráfico da escravatura, as burguesias de Angola, Moçambique e Brasil estão aliadas contra os interesses económicos e políticos portugueses, porque são os ganhos fabulosos do tráfico que lhes permitem acumular rapidamente riquezas e porque este corrompera de tal modo as estruturas sociais que já não era possível encontrar alternativas a curto prazo.
Outra precisão que talvez valha a pena fazer é que a «burguesia colonial» estava longe, pelo menos até ao fim do século XIX, de ser constituída unicamente por europeus, como por vezes alguns ainda julgam. José Capela confirma que «havia uma multidão de pretos, brancos e mulatos. Todos eram negociantes de escravos». Muitos testemunhos da época comprovam que o papel dos Africanos nunca foi meramente passivo, como já tivemos ocasião de referir. Lopes de Lima diz-nos que em 1844 viviam em Angola apenas 1830 brancos. Maria Emília Madeira Santos, na sua introdução ao Diário de Silva Porto, sublinha a diversidade racial dos sertanejos do Bié (Angola) em meados do século XX. O próprio Silva Porto relembra o sentido que a palavra «branco» adquirira no sertão: «Em geral por estas paragens dão o nome de brancos a todas aquelas pessoas que vestem calças sem excepção de cor e menos de condição, é bastante para isso possuir uma fazenda.»
Mas houve africanos com cabedais, alguns dispondo mesmo de vasto crédito nas praças de Benguela e de Luanda, tal como aconteceu não apenas em Angola, mas em Moçambique, em São Tomé, em Cabo Verde e na Guiné.
A «burguesia colonial» não tem, portanto, um conteúdo étnico preciso, porque pessoas das diferentes raças estiveram, no século XIX, repete-se, em condições de fazer parte dela. Certas grandes famílias africanas deixaram a sua marca na história desses territórios e só no século XX o seu rasto foi parcialmente apagado por uma política deliberada do poder colonial português e pelo crescente povoamento branco de alguns desses territórios. Essas consequências foram agravadas pela escassez de fontes escritas do lado africano, pela visão etnocentrista que transformou o discurso colonial num monólogo autocontemplativo, quase a-histórico, e pelos preconceitos ilusórios da pretensa10
superioridade do homem branco. Perante um «interlocutor» sem voz, a história colonial teceu um discurso arbitrário.
Em resumo, a existência de burguesias coloniais estabelecidas em África e no Brasil (mesmo depois da independência deste), obedecendo a interesses que não se identificavam com os da burguesia portuguesa, permite compreender melhor que a abolição do tráfico da escravatura não dependia apenas, nem principalmente, da promulgação de decretos em Lisboa. O Governo Português precisaria de meios muito mais poderosos para estar em condições de fazer aplicar a lei.
Mas Portugal, empobrecido pelas invasões francesas, devastado pela guerra civil, enfraquecido pela independência do Brasil e pela concorrência inglesa naquelas paragens, atrasado economicamente em relação a uma Europa já em plena revolução industrial, sem marinha de guerra, com uma administração interna que mais tarde Leroy-Beauheu, comedido, classificaria de «detestável» e causa de todas os males da Nação, não estava em condições de, com rapidez e eficácia, impor um decreto que arruinava as burguesias coloniais sem nada lhes dar em troca a curto ou médio prazos.
É bom relembrar a esse propósito que, segundo Andrade Corvo, em 1836 o rendimento público de quase todas as colónias portuguesas (índia, Macau, Moçambique, Angola, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde) era de cerca de 578 contos. A índia e Macau somavam 288 contos. Os restantes 290 contos pertenciam às colónias onde existia tráfico de escravos. Para sermos mais precisos ainda, acrescente-se que, desses 290 contos, 200 constituíam proventos do tráfico e apenas 90 provinham de outras receitas.
No século XX, tanto Angola como Moçambique eram, por assim dizer, muito mais colónias do Brasil do que de Portugal. Não foi, portanto, por acaso que os sentimentos de «independência» surgidos repetidas vezes naquelas duas colónias africanas fossem no sentido de ficarem ligadas ao Brasil. O que unia as três burguesias coloniais era a necessidade de manterem o mais tempo possível o tráfico da escravatura. Se não fossem as medidas drásticas tomadas pela marinha inglesa a partir de 1850, é quase certo que o calamitoso tráfico de escravatura para o Brasil teria continuado muito mais tempo.
Dissemos anteriormente que três questões estiveram no centro da política colonial do liberalismo: a assimilação jurídico-administrativa, a luta contra o tráficoe a lenta tomada de consciência de que a sobrevivência da escravatura nos territórios africanos impedia qualquer processo de desenvolvimento moderno e tornava inviável a desejada complementaridade entre o mercado da metrópole e os mercados coloniais.
Já nos referimos às duas primeiras questões (assimilação e tráfico). Desenvolveremos o problema do trabalho escravo no texto mais particularmente consagrado à segunda metade do século XIX. Importa todavia dizer aqui algumas palavras sobre este assunto.
Talvez não seja inútil relembrar, antes de mais, que a abolição do tráfico não significou de modo algum a supressão da escravatura. Como notou Valentim Alexandre, a diferença é importante, pois «abolição do tráfico e abolição da escravatura são questões distintas, com uma problemática diversa e pondo em causa diferentes interesses; unificá-los [...] impede de colocar cada uma delas no seu quadro concreto, e conduz a tratá-las sob a óptica do que, numa visão retrospectiva e artificial, lhes dá um sentido aparente - o 'idealismo' liberal ou as pressões inglesas».
O Decreto de 10 de Dezembro de 1836 de Sá da Bandeira, sobre a abolição do tráfico da escravatura a sul do equador, é extremamente cauteloso, devido à previsível oposição que ele iria encontrar nas colónias. Note-se que o decreto proibia o tráfico, mas não a escravatura propriamente dita.
O problema da escravidão e da sua forma imediata que é o trabalho escravo continuará presente nas colónias portuguesas muito depois de ter cessado o tráfico atlântico. A sucessiva legislação sobre o tema é reveladora. Por exemplo, o Decreto de 20 de Abril de 1858, assinado pelo incansável Sá da Bandeira, reconhece que «o estado de escravidão, cuja duração indeterminada se torna incompatível com os princípios proclamados na Carta Constitucional da Monarquia», deve ser abolido.
Em 25 de Fevereiro de 1869, Sá da Bandeira, sempre ele, apresenta ao rei um novo projecto de decreto para a «abolição total e definitiva» da escravidão. E nas razões apontadas ao monarca indica que «todos os Estados europeus que têm colónias aboliram a escravidão que nelas existia, com excepção de Portugal e de Espanha. E no continente americano apenas existem escravos no Brasil».
A acção de Sá da Bandeira contra o tráfico, primeiro, e contra a escravatura, depois, inscreve-se no programa da revolução setembrista que começa a olhar para as colónias africanas como possíveis mercados da produção manufactureira eagrícola nacional, e para as quais se tem por um momento a ilusão de vir a canalizar a emigração portuguesa. Mais remotamente, essa política inspira-se igualmente nos esforços do antigo governador de Angola, Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, que durante a sua governação (1764-1772) considerou necessário (e tentou-o) pôr fim ao abuso de «fazer trabalhar os Negros sem os pagar, o que destrói províncias inteiras», pelas deserções que provocava. Sá da Bandeira conhece igualmente bem os relatórios de Saldanha da Gama. Este, referindo-se em 1814 à escravatura e a uma das suas formas mais terríveis, que foi o serviço de transporte por carregadores, apontava também as consequências nefastas para a agricultura, «privada dos braços necessários aos seus trabalhos», e mostrava a impossibilidade de qualquer modernização enquanto tal sistema perdurasse.
Partidário de uma economia moderna e liberal, Sá da Bandeira pretende destruir um sistema depredatório e institucionalizar os mecanismos do lucro e do trabalho assalariado livre, única via para a mudança do sistema e das mentalidades.
Mas, mais ainda do que na abolição do tráfico atlântico, onde havia uma pressão internacional efectiva com meios para intervir, a luta contra a escravatura nos territórios africanos vai revelar-se particularmente difícil. Também aqui não basta-vam decretos para impor o trabalho assalariado livre e proporcionar oportunidades económicas à iniciativa individual. Parafraseando Manuel Villaverde Cabral, tal como na Europa os camponeses arruinados não se precipitaram para a porta das fábricas, também os camponeses africanos não poderiam descobrir sozinhos o caminho das manufacturas ou das plantações. Seria necessário, em primeiro lugar, que estas existissem na primeira metade do século XIX e, em segundo lugar, que a administração portuguesa e a economia colonial tivessem o domínio absoluto do território africano e da sua população. Nenhuma dessas condições foi alguma vez preenchida no período oitocentista.
A verdade é que o Governo de Lisboa só a muito custo se fazia ouvir nos centros urbanos do litoral de Angola e Moçambique. Mas tanto aí como noutras colónias portuguesas, quando os seus decretos chocavam com os interesses coligados dos comerciantes e dos militares, aos quais se juntavam frequentemente os governadores, os obstáculos erguiam-se e as decisões arrastavam-se indefinidamente ou, pura e simplesmente, não se aplicavam.Referindo-se também ao período oitocentista, Vitorino de Magalhães Godinho aponta «o drama da elite portuguesa de então: generosa nos ideais, lúcida na visão das realidades (pelo menos em parte), não dispõe de meios de agir e portanto só fraquissimamente influi na evolução da sociedade a que pertence e de que está quase segregada» (Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa, p. 163).
E também o que, de certo modo, se poderia dizer a propósito da acção dos governos liberais nas colónias: tinham uma política colonial que traduziam em decretos, mas não os meios de a fazer aplicar.
Durante todo o século XIX e entrando pelo século XX adentro, o Parlamento português é fértil em legislação. Quando desaparece, mais tarde, a figura do escravo, surge a do liberto, a do serviçal e a do contratado. E duvidoso, porém, como tentaremos provar no texto sobre o período seguinte, que a situação dos povos africanos tenha mudado tão significativamente como se pretendeu.
O balanço da actividade legislativa portuguesa, da revolução liberal ao século XX, não poderia ser feito por entidade mais qualificada do que Norton de Matos. E ele que nos diz nas suas Memórias que a escravatura «reduzida e disfarçada, é certo, se conservou em Angola até há poucos anos», tendo sido os «primeiros governadores da República que [lhe] deram o golpe final»

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