quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

RUY DUARTE DE CARVALHO: pastores kuvale da província do Namibe com um relance sobre as outras sociedades agropastoris do sudoeste de Angola

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RUY DUARTE DE CARVALHO


AVISO À NAVEGAÇÃO
olhar sucinto e preliminar
sobrepastores kuvale
da província do namibe com
um relance sobre as outras
sociedades agropastoris
do sudoeste de angola


INTRODUÇÃO

PARA A APREENÇÃO PRELIMINAR DE UMA SINGULARIDADE KUVALE...

Proponho partir de duas citações. Não porque as aprecie sobremaneira mas porque introduzem, de pronto, no vivo da matéria, na singularidade de um "caso":
"Elsewhere, aridity and sand made farming difficult, except for the valleys of some of the larger streams flowing down from the highlands; there, small, distinctive communities combined stock-keeping with whatever agriculture they could manage to support themselves."
Joseph C. Miller, Worlds Apart: Africa's Encounter with the Atlantic in Angola, ca. 15OO-185O, Seminário Internacional de História de Angola, 1995, 22 p.
"Pourtant, à cheval sur le Sud et le Centre-Angola, subsiste, résiduelle, l'ethnie Herero dont un sous-group, celui des Cuvale, va avoir le triste privilège de subir le poids de la guerre totale à une époque aussi tardive que 194O-41."
René Pélissier, Les Guerres Grises, Resistence et Revoltes en Angola (1845-1941), Orgeval, 1977, 63O p.
Os Kuvale são Herero, portanto, encravados na aridez e na areia, "residuais" e sobreviventes de uma guerra total. São Herero em Angola, tal como o são os Ndombe, a Norte, os Hakahona e os Dimba, a Leste, os Himba, a Sul. Estes estendem-se para além do rio Kunene, pela Namíbia, onde se misturam ou encostam aos Herero que, com os Mbandero entram pelo Botswana. Da maneira como a aridez os "encrava", e eles se encravam nela, direi abundantemente ao longo deste texto. Da sua história recente, que é a de uma recuperação consumada, referirei factos e efeitos.
Os Herero de hoje provêm de populações pastoris de língua banta que terão chegado à costa ocidental da Africa, pelo Leste, a nível do paralelo de Benguela, e que, alcançadas as estepes que precedem o mar, flectiram para Sul, cada vez se internando mais nas bordaduras do Deserto do Namibe e depois para Leste, até ao Kalahari.
A viagem que as trouxe até aí é mais um percurso no tempo do que uma deslocação no espaço. Elas faziam parte de uma expansão bantu de cultura pastoril que quando atingiram o território do que é hoje Angola, talvez no séc. XV, durava provavelmente há mais de 1 5OO anos, desde que os seus antepassados de língua, os Bantu depois chamados de Orientais, se encontraram na costa Leste com os Nilóticos, que lhes transmitiram a cultura pastoril que por sua vez tinham aproveitado dos Cuxitas, 3 OOO anos antes. Os Cuxitas, esses, tê-la-ão recebido do Oeste, das franjas do Sahara, que entretanto secara. As mutilações
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dentárias, o sistema das classes de idade, a recusa de comer peixe, traços culturais que vigoram entre os Kuvale de hoje, remontam, tanto quanto se sabe, aos Cuxitas, por não se saber se estes também os não receberam de outros.
A qualidade dos pastos, sem dúvida, a boa resposta dos animais aos recursos do meio em condições normais, a possibilidade de garantir a vida e a reprodução ou a renovação de um sistema pastoril mesmo tendo que enfrentar oito meses secos cada ano e anos de chuvas muito reduzidas, terão estado na base da fixação a partir das bordaduras do extremo norte do deserto do Namibe de populações que transportavam consigo a memória colectiva e a marca cultural, inscritas nos comportamentos e nas dinâmicas, de paisagens inegavelmente semelhantes, pelo menos à primeira vista, gazelas e zebras, por exemplo, ou capins, Schimitias e Eragrostis, do outro lado do continente. Sendo evidente a excelência dos pastos, também é possivel estabelecer ali uma gestão da água que acaba por ser a dos próprios pastos em função da água ou vice-versa: transumância, portanto, antes e agora. Muita coisa terá mudado entretanto, evidentemente, a presença da fauna selvagem e da sua intervenção no eco-sistema mudou mesmo radicalmente (ela está hoje praticamente extinta), a presença do próprio homem explicará muitas das configurações florísticas do presente, mas os termos globais da produção e da produtividade continuam a fundamentar-se numa interacção ecológica directa.
Os Kuvale não serão hoje mais de 5 OOO, mas ocupam um território vasto: mais de metade da Província do Namibe. São na actualidade um povo próspero, nos termos que eles próprios valorizam: estão cheios de bois. Os seus espaços não foram praticamente, a não ser a Nordeste, teatro de incidências directas da guerra, tem havido chuva nos útimos anos, pelo menos que chega para manter o gado (até tem havido anos bons e há muito tempo que não há verdadeiramente nenhum ano mau) e, no entanto, o processo de Angola todos os anos os coloca em situação de penúria alimentar. Não conseguem trocar bois por milho. Este binómio, tanto boi-tanta fome, é mais um sinal da sua singularidade. Mas não é esta, também, a de Angola? Tanto petróleo...
De qualquer forma constituem um "caso" em Angola. Analisar a sua singularidade é analisar a de Angola e haverá questões e detalhes que embora aqui apareçam referidos a eles, correspondem a problemas, e a problemáticas, que dizem talvez respeito a outros Angolanos, senão a todos.
Sobre os Kuvale de ontem e de hoje não há muito material escrito. Há, evidentemente, uma vasta bibliografia sobre os Herero a partir da Namíbia, mas sobre os Kuvale e os restantes Herero de Angola só há mesmo algum material histórico, e coloco aqui alguns artigos técnicos das primeiras décadas deste século, a etnografia de Carlos Estermann, e um único, que eu saiba, trabalho científico, o de Julio de Morais, uma tese pioneira de análise ecológica, datada de 1974.
O trabalho de terreno que garantiu o que a seguir exponho foi levado a cabo, intermitentemente, de 1992 a 1996, e foi possível graças a apoios oficiais e privados a que irei tentando agradecer, e prestar contrapartida, à medida que puder ir divulgando os resultados. O presente trabalho faz parte desse processo. Nele procurarei condensar o mais possível, sem entrar em grandes detalhes históricos ou etnográficos, a informação que julgo estar em condições de poder disponibilizar no âmbito de uma exposição que se pretende eminentemente pragmática e dirigida sobretudo a decididores de políticas e de acções, a agentes da intervenção e a outros sujeitos eventualmente implicados numa interacção prática com os Kuvale e, por extensão, com as sociedades pastoris e agropastoris de Angola de uma maneira geral.
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... Geográfico-ecológica
Numa paisagem onde se vê o homem actuar sem procurar à partida afeiçoá-la a objectivos económicos que a alterem, onde os seus próprios interesses vitais e palpáveis passam pela utilização da paisagem tal como ela é, será difícil ao observador não se deixar envolver pela temática ecológica. Para ser mais preciso, não é só o facto de não se observarem ( a não ser talvez se se for um agrostólogo perspicaz) alterações produzidas pela presença do homem. É que o homem, aqui, pode parecer uma emanação do meio, e este poderia ser o ponto de partida para uma deriva, para um qualquer acesso de impressionismo, de delírio romântico, via certamente segura e garantida de ficar definitiva e eternamente de fora tanto da problemática que envolve este homem como daquela que envolve este meio. Mas é verdade que tudo aqui se projecta sobre um fundo ecológico e que grandes nomes ligados ao estudo das sociedades pastoris como Gulliver, Deshler, Dyson-Hudson e Jacobs, e outros classificados como neofuncionalistas umas vezes, neoevolucionistas outras, são nomes ligados ao ecologismo cultural.
Aqui, de facto, a cultura não pode ser entendida fora de um quadro de interacções em que tudo quanto é exterior às pessoas, e aos grupos que as pessoas constituem, é, praticamente só, natureza accionada e condicionada por factores em que a tecnologia pouco intervém.
Os terrenos são pastagens naturais, a água é a que provém de chuvas escassas e breves, a agricultura possível está sempre dependente da ocorrência da primeira chuva e da regulariade improvável das que se lhe seguirem, as águas acumuladas não permitem regadios nas zonas que são precisamente as das melhores e mais abundantes pastagens, a produção de cereais é sempre fortemente condicionada e aleatória. Vindo tarde, a chuva, não permitirá já a cultura do milho, talvez só permita ensaiar a do massango. Mas mesmo chegando tarde garantirá ainda assim os pastos, e mesmo escassa poderá assegurar a manutenção dos animais, a preservação dos vitelos que entretanto tenham nascido, haverá leite para eles e para as crianças, transitar-se-á para o ano seguinte sem que se tenha obrigatoriamente registado um saldo de todo negativo. Será necessário, para tanto, ter sabido agir com a ciência adequada à gestão de um equilíbrio muito precário.
É esta portanto a área geográfico-ecológica que os "encrava". Ao incauto não poderá deixar de por-se a interrogação de como é possível extrair vida e razão para viver num meio assim e a evidência de que da relação que garante a sobrevivência ali há-de necessariamente resultar um homem tão diferenciado quanto o próprio meio. Ao técnico, esta mesma relação impõe, na maioria dos casos, respeito. Ao analista social, não obrigatoriamente "perito" e apressado, a impressão que prevalece é a de que para lidar com tal precariedade será preciso investir muita "ciência", ou a ciência de extrair dali o que não é precário, é mesmo melhor que alhures.
... Económica
Equilíbrio é a palavra chave e trata-se de um equilíbrio que vai ter sobretudo em conta a manutenção física dos animais e a produção de leite. A economia em
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presença é, realmente, uma economia do leite. A sociedade não perde, não pode perder isso de vista. Todo o trabalho desenvolvido a partir do gado bovino se desenvolve com base no pressuposto de que do leite depende precisamente a reprodução do rebanho que é não apenas a fonte produtora do leite para um regime alimentar humano que se fundamenta nele, mas também da carne que o complementa e dos excedentes que darão acesso ao aprovisionamento de cereais e outros "apports" do exterior. A criação de outras espécies animais, como a de ovinos e caprinos, dependente dos mesmos factores ecológicos, complementa a dos bois e visa, por sua vez e sobretudo, a produção de "moeda" para transacções com o exterior. É verdade que a produção destes pequenos animais, com destaque para a de caprinos, se tem revelado particularmente adequada ao comércio dos últimos anos, marcadamente episódico e envolvendo pequenos volumes de mercadoria, com comerciantes de passagem e povos vizinhos. Mas também esta circunstãncia confirma toda a importância do gado bovino nas condições de "encapsulização" económica que os últimos anos têm imposto.
De facto, no certo, no verdadeiro, para além da escassa produção agrícola que as chuvas puderem garantir e de um subsidiário recurso a uma igualmente escassa produção vegetal espontânea, só se pode mesmo contar com o leite que as vacas e em casos de extrema crise as ovelhas e as cabras produzirem, com a carne que resultar dos animais doentes e débeis que não resistirem, e com a daqueles que forem abatidos, sempre a coberto de pretextos sociais reguladores, como veremos mais tarde. A pastorícia tal-qual, portanto, a relação animais/água/pastagens tendo em vista a manutenção e a reprodução dos rebanhos, a sua rodução, absorvem e polarizam todas as dinâmicas técnicas, sociais e culturais que hão-de estabelecer os contornos e a especificidade do sistema. Uma questão de equilíbrio, desta forma, que tem em conta já não só as condições ecológicas e as extracções energéticas que elas garantem, mas também a gestão social e a cobertura cultural, ou ideológica, que assistem ao seu aproveitamento. A noção de equilíbrio atravessará todos os sistemas que garantem a subsistência e a reprodução do grupo humano.
Quadros sociais e culturais urdidos à volta da relação com o boi e com o meio, bem como a interação entre tudo isto e o presente virá a ser, logicamente, a matéria principal deste trabalho. Retenhamos por agora que a uma economia tão estritamente pastoril não poderá deixar de corresponder uma cultura igualmente marcada pelos argumentos da pastorícia, e que esses argumentos, ou "valores", comportam expressões tão susceptíveis de entrar em choque com os da cultura e da economia envolventes e dominantes como o desprezo pela agricultura, os agricultores, os "assimilados" às dinâmicas ocidentalizadas, a repulsa pela prestação de força de trabalho a terceiros e a legitimação de entrar na posse de gado dos vizinhos. É pela via desses choques que a história moderna tem sobretudo envolvido os Kuvale. E também ela dá testemunho da sua singularidade.
... e Histórica
Considerada em relação à sua projecção imediata no presente, a história dos Kuvale diz sobretudo respeito àqueles eventos que na memória colectiva ficaram assinalados como "guerras", sucessivas e marcadas pelos sinais da sua colocação no tempo, inevitavelmente ligadas a disputas pela posse do gado: razias, contra-razias, repressões administrativas e militares, espoliações e saques, processos de desapossamento e de recuperação que trazem já em si as dinâmicas que apontam, ou poderão apontar, à renovação de um ciclo que tende a ser vicioso.
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Em termos de tratamento disciplinar esta história continua, naturalmente, por fazer, e não me cabe a mim, evidentemente, ensaiá-la sequer. Existem fontes documentais a explorar e trabalho de terreno a orientar nesse sentido e embora neste último domínio eu tenha recolhido dados que podem vir a revelar-se úteis, no que se refere a fontes escritas apenas utilizei material imediatamente consultável.
Os testemunhos que obtive no terreno referem-se explicitamente à guerra dos Kambarikongolo, às do Nano, à dos Ingleses, e uma sucessão de outras guerras, Mulungu, Kapilongo, Kalute, que acabam por conduzir àquela que veio a colocar os Kuvale em situação de completa derrota e paralisação, à beira da sua extinção não só enquanto grupo sócio-culturalmente distinto e identificável, mas também física, numa grande medida: a guerra chamada Kokombola, a de 194O-41, que quer dizer a guerra geral, total, "mundial", como me foi referida por um informante escolarizado. É essa a guerra que no tempo colonial ficou conhecida como a "guerra dos Mucubais", referência que ainda hoje é utilizada nos meios envolventes.
A primeira, a guerra dos Kambarikongolo, é a que em textos portugueses costuma ser designada como a guerra dos Hotentotes e corresponde à extensão pelo Sul de Angola da expansão de grupos Khoi, os Topnaar e os Swartbooi, que, a partir do que é hoje o Sul da Namíbia, se alargou para Norte, conquistando gado e pastagens aos Herero e aos Himba até à margem do rio Kunene, obrigando muitos destes últimos a migrar para o lado de Angola, e trazendo até às portas do que é hoje a cidade do Namibe, e era então a Vila de Mossâmedes, acções de razia que sobressaltaram durante largos anos todo o nosso Sudoeste. Ela obrigou inclusivamente muitos Kuvale a refuguiarem-se e a fixarem-se, nalguns casos, para além dos contornos e da escarpa da serra, com um subsequente processo de retorno à zona de serra abaixo, lento e prolongado, que parece projectar-se ainda no presente. Tenho encontrado mais-velhos Kuvale que nasceram lá e ainda hoje se vêem implicados em relações de parentesco aí urdidas na decorrência de tal movimentação circunstancial. Ela pode, por outro lado, e essa é uma hipótese a esclarecer, corresponder à citada guerra dos Ingleses. Os grupos de raziadores Khoi eram acompanhados, e por vezes enquadrados, parece, por "mestiços-ingleses" oriundos do Orange e do Cabo. Mas poderão também os "Ingleses" referidos ainda hoje ser os Alemães, 28 famílias, vindos directamente da Alemanha e que aparecem no Sul de Angola, postos aí pelo governo português, acompanhadas por um lote de Portugueses saídos da Casa Pia, de Lisboa. Foram-lhes dados terrenos no Munhino e na Bibala, mas cedo desprezaram as hipóteses agrícolas para se investirem na apropriação de gado de populações vizinhas.
De qualquer forma, simultaneamente a estas guerras vinham decorrendo as "guerras do Nano", acções de razia praticadas por numerosos bandos oriundos do "alto", do Nano, os Munanos, como ainda hoje são designados na região os povos do planalto interior a Norte e os Ovimbundo de uma maneira geral. Elas exerceram uma forte pressão sobretudo sobre as populações do planalto interior sul e estenderam-se até à costa.
Muitas dessas guerras do Nano traziam já a marca da incidência europeia directa. Mossâmedes é sacudida em 15 de Agosto de 1848 por uma dessas guerras, tendo os pastores locais, do vale do Bero, vindo acolher-se à Fortaleza. Cedo se esclarece tratar-se antes de uma "guerra de brancos", composta por gente de Quilengues e escravos dos regentes dessa capitania e do Dombe Grande, e sob a influência de uma figura que acompanha a história da região durante largos anos: o então Major Garcia.
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Isso faz parte de um processo que haveria de estender-se até à guerra de 194O-41 e que envolve desde o início, como era de esperar, as próprias autoridades portuguesas que empregam grupos vizinhos uns contra os outros tanto em operações de razia como em perseguições, quando os povos da região são acusados de fazerem o mesmo por conta própria.
Que os Kuvale "roubam" gado nunca constituiu dúvida para ninguém e são muitas as acusações que neste sentido e ao longo dos tempos vão pesando sobre eles, ao princípio designados como "Mondombes" segundo um equívoco que há-de prevalecer por muito tempo. Já nessa altura são julgados como insubmissos, rebeldes, avessos ao trabalho e sobretudo, sempre, refinados e inveterados ladrões de gado. Ao longo de toda a segunda metade do séc. XIX eles serão alvo de ferozes retaliações por parte da administração e dos colonos, chegando-se a organizar contra eles "guerras gentílicas", constituídas por 3O OOO homens recrutados para o efeito ( Silva 1971:496).
Essa é mais uma marca da história que vem reflectir-se no presente. Este tipo de acções, envolvendo outros Africanos, deu curso a um movimento belicoso de razia recíproca entre populações Kuvale e Tyilengue, a noroeste do território dos primeiros, que se prolonga até hoje e que define alguns dos contornos das suas respectivas implicações nas guerras actuais.
Em 188O, um ex-governador do Distrito de Mossâmedes refere que no ano anterior fora enviado um ofício ao chefe do Concelho de Campangombe, proíbindo-lhe opor-se à passagem de uma guerra que vinha do sertão de Benguela para guerrear os "Cubaes". Ao que o chefe responde logo a seguir para dizer que "a guerra é convocada por brancos com o sentido de guerrearem os mondombes", e que a intenção dos "convocadores da guerra" não podia ser outra senão "terem parte dos roubos que a guerra fizesse". Num outro ofício, cinco meses mais tarde, o mesmo chefe confirma: o soba de Quilengues, que foi quem comandou a tal guerra "cumprindo literalmente a ordem do Exmo Governador do Distrito (...), entregou aos europeus residentes no Concelho do Bumbo todo o gado que havia sido apreendido (...) tendo trazido apenas para as suas terras a gente prisioneira de guerra" (Almeida 188O:52-53). Um outro administrativo refere-se, também longamente, mais tarde mas reportando a mesma época, às relações entre Kuvale e Tyilengue, sendo estes, sob a regência dos então capitães-mores, sistematicamente utilizados contra aqueles ( Frazão 1946 :269). Sobre o inverso, Kuvale utilizados por autoridades ou Brancos privados para atacar outros povos, nada encontrei nas leituras que fiz.
As "guerras" que vão seguir-se às do Nano, na sequência atrás apontada, reportar-se-ão já ao séc.XX e correspondem sobretudo às diligência administrativas de que os Kuvale foram sendo sucessivamente objecto até à catástrofe de 1941. Elas terão de novo e de algum modo aparecido sempre associadas a acções que envolvem grupos vizinhos,usados também, a partir daí, como tropa auxiliar. As menções a estas diligências administrativas, nomeadamente da parte de técnicos veterinários ( Sequeira 1935, p.e.) que operavam na região, é constante.
A guerra de 194O-41, que é a última e a definitiva destas diligências, utilizou cerca de mil soldados a que se juntaram mais mil auxiliares indígenas, mestiços e europeus, dois aviões, um deles da aviação cívil artilhado com uma metralhadora e equipado com bombas, e um pelotão de morteiros para combater, meter na ordem, uma população Kuvale estimada num máximo de 5 OOO pessoas. Durou 5 meses, comportou execuções em massa e atrocidades contra prisioneiros, deu cobertura a saques e a pilhagens, confiscou cerca de 2O OOO cabeças de gado bovino , ou seja, estimou-se, 9O% dos efectivos totais anteriormente na posse do grupo. Fez mais de 3 5OO prisioneiros que depois remeteu às ilhas de S. Tomé
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e do Príncipe, à Lunda, onde trabalharam para a Diamang, à Damba, em Malange, a propriedades agrícolas e à Câmara Municipal de Moçâmedes. Assegurar-se-ia assim, de acordo com o comandante das operações, a sua adaptação a hábitos de trabalho e interesse pela agricultura ( Sotto-Maior 1943 e Pélissier 1977:5O9-515).

continua...

pastores kuvale da província do namibe

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