quarta-feira, 6 de abril de 2011

Luanda, 8 de Novembro de 1975: Uma Noite Com Trinta Anos por Leston Bandeira

Embarque das Últimas Tropas Portuguesas em Luanda
  O embarque das Últimas Tropas Portuguesas em Luanda
Soldados Portugueses
A retirada da bandeira portuguesa
 fotos colocadas  além do texto)

 Já descrevi a minha chegada a Luanda, a 8 de Novembro de 1975, sob a pressão de tropas invasoras do Sul. Os amigos, os conhecidos e os que passaram por uma coisa e outra tinham fugido. Depois, os camaradas, "bazado". Em Luanda, aonde já não ia há algum tempo, a surpresa quase me paralisou. A cidade não existia, parecia um sítio onde tinha caído uma bomba de neutrões.
Do Lubango até Luanda tinham viajado connosco a Bany e outras criaturas (hoje, por sinal, gente célebre na praça). Quando digo "connosco", quero dizer eu e a Zi, a minha companheira, a minha mulher.
Chegámos a Luanda e, por acaso, encontrámos a casa do Pedro D'Ornelas ( de quem, um dia destes destes, contarei um par de estórias). Em Casa do Pedro estava ele, a Rita e não sei mais quem. E algumas latas de atum e arroz. Deu uma refeição. No final, olhámos uns para os outros, com alguma dignidade, porque esta coisa da fome perturba, analisámos a situação politico-militar e cada um seguiu o seu caminho.
Dia nove ainda houve um resto do arroz, com a água do atum, mas no dia dez, NADA! De manhã à noite. Nem um grão de arroz. Luanda era uma cidade sem vida. Estava toda a gente escondida em casa. Ninguém atendia o telefone. Na casa do Pedro encontrámos o Graça, professor de Matemática no Lubango e que também tinha feito " a retirada estratégica" para Luanda. No prédio onde vivia, na Rua Direita de Luanda, havia um apartamento de um amigo, que tinha "bazado", e de que ele tinha a chave. Subimos não sei quantos andares para nos instalarmos e, por volta das onze da noite, com os estômagos a roncar com fome, começámos a ouvir tiros de armas pesadas. Pensámos: "os zairenses conseguiram entrar..."Pelos vistos, era preciso inventar um esquema de sair de Luanda sem ser notado. A minha fotografia fazia parte dos dossiés dos invasores: "cortar a barba, ir para o porto...sei lá".
Sem informação, sem rádio, sem nada que nos explicasse o que estava a acontecer, só percebíamos os tiros de armas pesadas e ligeiras.
No dia seguinte percebemos que tudo aquilo eram as comemorações da "Dipanda". Com algumas vítimas à mistura: houve uma família que morreu toda, porque lhe caiu na comemoração da independência uma granada de morteiro lançada por um vizinho que tinha o morteiro e a granada guardados para aquele dia. O dia 11 não foi muito diferente. A retirada vergonhosa dos portugueses e dos altos comandos, as fantochadas políticas, todas nos passaram ao lado. A nossa gente estava em dificuldades e nós com eles. Comemos mabangas, arroz com feijão, peixe espada frito até ao enjoo.
Um dia, num restaurante que, entretanto, tinha reaberto, segui o inclinar das cabeças de todos os clientes e descobri uma criança que estava a entrar portas adentro. Há que séculos aquela gente não vislumbrava o sorriso de uma criança...Viver em Luanda transformou-se num acto de fé. Também dava para a brincadeira: à hora do comércio abrir, sobretudo depois da hora de almoço, dois ou três de nós colocávamo-nos em fila à entra de uma loja. Logo a seguir, se formava uma longa fila de gente que ia perguntando: "camarada, tá a sair o quê?..."
Começou aí a realizar-se a grande capacidade da sociedade angolana para se defender dos sistemas, para se auto-organizar.
Também principiaram aí as grandes fortunas angolanas, ostentadas, trinta anos depois, por personalidades que não as explicam, mas se afirmam, em semanários portugueses ( Expresso) disponíveis para investir em Angola, escondendo que as reais fortunas de que dispoêm estão espalhadas um pouco por toda a parte, inclusivé em Portugal.
Não posso deixar de constatar que há aqui uma convergência de interesses: o do Expresso, que quer instalar-se em Angola, para aproveitar um pouco da ocupação chinesa e o dos detentores de fortunas inexplicáveis que as querem transformar em motivo de honra nacional e até de pretexto para candidaturas à presidência da República.
Ao que a lembrança de uma noite de fome conduz...

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