sábado, 29 de outubro de 2011

Excerto do Relatório Por Angola: Sebastião Lopes de Calheiros e Menezes, governador geral. 1861-1862


Sebastião Lopes de Calheiros e Menezes, governador geral. 1861-1862
"...  E este o estado em que ficou a colonia a meu cargo no fim do anno, a que este relatorio se refere. Se não ha grandes resultados obtidos, alguma cousa todavia me parece poder notar-se com vantagem em relação ao que por mim foi encontrado, e sobretudo mais alguma cousa ha a esperar da semente qne lancei á terra, e que é de crer que germine e fructifique.... 
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     Poderia concluir aqui o meu trabalho; parece-me porém conveniente levar ao conhecimento de Sua Magestade o meu juizo sobre o futuro da provincia, assim como as minhas vistas sobre o modo de promover o seu desenvolvimento e prosperidade.

Os dominios portuguezes d'esta parte da África comprehendem, como já demonstrei, uma immensa extensão de territorio, que pôde adiantar-se extraordinariamente para o interior. Esse territorio é cortado de rios, que correm para a costa occidental, e os seus valles são notavelmente ferteis, assim como as entranhas da terra se mostram ricas de metaes. Podem portanto esses dominios offerecer valiosos recursos, e a metropole deve aproveita-los. É essa com effeito uma lhes e irrefutavel. O que resta é determinar os meios para se alcançar o fim. 

Este paiz jaz sob o sol dos tropicos, e é habitado por pretos. Estes, se não são em geral uma raça inferior, são-no porventura em especial, e os de Angola são talvez da especialidade; mas quando o não sejam, acham-se em completo estado de rudeza.

Estes pretos conservam-se quasi completamente no estado da natureza, a preta é como escrava e obrigada aos trabalhos mais rudes, não conhecem as necessidades da civilisação, e as naturaes, n'esta zona, em que são muilo mais limitadas, e onde a terra produz, quasi espontaneamente, o sufficiente em relação á sua população, póde dizer-se que as satisfazem sem trabalho. Por outro lado o calor tropical, se não mesmo a sua propria natureza, convida os pretos á indolencia e ao ocio. E portanto muito preguiçosa toda essa população indigena, e muito diminuta relativamente á immensa extensão de territorio.

    Como pois aproveitar os recursos d'esta terra, se os seus habitantes não offerecem os precisos meios de trabalho? Dir-se-ha que importando no paiz a raça branca com a sua intelligencia, energia, amor e habitos de trabalhar. Mas os valles de Angola, onde se produzem os generos coloniaes, não permiltem o trabalho aos brancos; e se com o devido resguardo ahi poderiam viver e fazer cultivar a terra dirigindo o trabalho dos pretos, falta-lhes a precisa acção sobre elles pela quasi completa isenção do trabalho forçado. E nos pontos elevados da provincia, onde, dizem uns, e suppõem outros, que o branco vive bem, ou não se produzem os generos coloniaes, ou ficam a tão grande distancia que o preço do transporte torna sem valor a cultura, resta é determinar os meios para se alcançar o fim. 
    Quando porém com mais ou menos sacrificios a colonisação branca fosse possivel, d'onde havia de vir essa colonisação? O reino e as ilhas adjacentes, que gente poderão dar annualmente para colonisar a nossa África? Não é bem sabida a escassez de braços, que a emigração para o Brazil ahi tem produzido? Ainda que se dirigisse para Angola toda essa emigração (o que não devia tentar-se, porque uma parte d'ella será mais util á metropole no Brazil, do que em Africa), não era isso um grão de areia lançado annualmente n'esse vasto deserto? E a emigração da Europa, emquanto estiverem ermos os sertões da America do norte e da Australia meridional, tão saudaveis como os valles europeus, e os sertões do Brazil mais saudaveis que os de Angola, poderemos nós ter a pretensão de a chamar aqui?
    Dir-se-ha que não se tem ainda explorado este paiz á luz da sciencia ou mesmo da inteligencia, que ainda se não fizeram esforços de colonisação e aclimatação, de modo que possa deduzir-se, que lhes da impossibilidade do trabalho dos brancos está demonstrada. Suppondo, mas não concedendo que assim seja, estamos nós em circumstancias de arriscar gente e dinheiro em experiencias, que pelos argumentos àpriori não devem dar bom resultado ? Deveremos despovoar o sul do reino, o Minho e os Açores para correr o risco de inutilisar colonos nos nossos sertões africanos?
Mal guiadas vão pois, quanto a mim, as idéas d'aquelles que pensam no grande impulso agricola que dizem poder e dever dar-se á provincia de Angola, enviando meios e gente do reino. Eu não posso ter illusões a esse respeito, em vista do conhecimento que pessoalmente adquiri d'esta provincia, e da de Cabo Verde, percorrendo a costa e o interior.

A agricultura dos brancos em Angola, em generos coloniaes, póde dizer-se impossivel sem o trabalho forçado; e mesmo assim nunca será tão productiva como em S. Thomé, na Havana, no Brazil e Estados Unidos, pela facilidade que têem os pretos de subtrahir-se á acção dos brancos, fugindo para onde não é possivel ir busca-los, o que não succede nos paizes citados.
Trabalho livre dos pretos, prestado aos brancos pela remuneração, que o producto da agricultura dos tropicos permite dar, é um sonho, ao menos por ora. Os pretos que, por excepção, forem laboriosos, trabalham para si, que de pouco carecem, e não para os agricultores brancos; cultivam a sua propriedade tão facil de obter, e que lhe dá mais lucro com relação ás suas necessidades, que o salario do lavrador, do qual não supportam a sujeição, incómmoda aos seus habitos e desnecessaria ás suas limitadas aspirações; quanto aos preguiçosos, podarão agricultor dar-lhes salario que os convide?
Como os precedentes do governo de Sua Magestade são todos contrarios ao trabalho forçado nas colonias africanas, seria ocioso fazer indicações em tal sentido, e pelo mesmo motivo cumpre dizer, que se não deve ter illusões a respeito do seu grande desenvolvimento agricola.
Partindo d'estas bases, e sendo taes as minhas convicções, é claro que sou de opinião, que as vistas do governo se devem dirigir particularmente sobre a exploração commercial d'este paiz, e sobre os meios de educar e aportuguezar a raça preta, pois que será com ella e por ella, que poderá levar, se é possivel, n'um futuro mais ou menos remoto, este paiz ao gremio da civilisação. Não digo que se despreze a agricultura, onde ella seja verdadeiramente util e productiva, e a distancia que possa facilmente proteger-se, e receber o impulso da intelligencia e esforço dos europeus que venham estabelecer-se n'esta provincia. Para isso bastará, durante muitos annos, ulilisar os terrenos proximos da costa e o dos valles dos rios, que são os mais promettedores e os que merecem consideração.
É de primeira necessidade tomar os nossos limites legaes n'esta colonia, e occuparmos devidamente a costa entre 5° e 12', e 18° de latitude, de modo que passe pelas nossas alfandegas todo o commercio de importação e exportação que n'ellas se faça, e assim cessará o trafico entre o Ambriz e Molembo, onde estou convencido que não acaba senão com essa occupação pela nossa parte. Devemos estabelecer communicações para o interior pelos rios como o Cunene, que constituirá ao sul a nossa fronteira, não convindo estender a occupação pela costa alem da sua foz por um paiz deserto e esteril; e tambem seguir pelo Zaire, que constituirá ao norte uma grande linha commercial, garantida pela occupação da cosla até 5° e 12' de latitude meridional (1).

1 Em 2 de dezembro de 1861 foram pedidos ao governo dois botes de ferro, para com eltes se proceder ao reconhecimento do rio Lucatla. Estes botes acham-se hoje em Loanda. O Lucatla (em grande desenvolvimento desde as terras da Ginga até á sua confluencia em Massangano com o rio Quanza; e poderá tatvez tornar-se uma grande via industrial, aindaque a navegação aio se verifique, senão passando os generos por terra em curtas distancias do plano superior para o plano inferior das cachoeiras ou obstaculos; o que é facil, mandando estabelecer nos pontos adequados povoações, que se prestarão a esse trabatho, mediante diminuto salario.
Em seguida cumpre chamar os pretos ás nossas relações e sujeição pelo bom trato, sem vexames, ou exigencias pecuniarias, como signal de vassallagem. Sejam as alfandegas a fonte de receita da provincia. Se pois nos não temos gente (nem a teriam outras nações) para colonisar a provincia e explora-la agricolamente desde já; e so pelo systema indicado da occupação, o commercio viria espontaneamente aos nossos estabelecimentos, não lendo outra parte onde comprar e vender; segue-se que as occupações no interior, pelo centro, não deverão estender-se alem de certos limites, porque o contrario será nocivo e perigoso, ao passo que é desnecessario. Temos uma linha de occupação no interior, já em verdade bastante avançada, desde S. Salvador do Congo, ao pé do Zaire, até ao Humbe sobre o Cunene, interrompida, comojámostrei, por grande extensão de territorio, não guarnecido, entre o districto do Golungo Alto e o do Ambriz ao norte, entre o mesmo districto e o de Benguella no centro, e entre este ultimo e o de Mossamedes ao sul. Conservar essa linha, senão mesmo reduzi-la a limites convenientes, e em qualquer dos casos fortifica-la e guarnece-la, estabelecendo n'ella colonias militares, e collocar n'estas Iodos os degradados, que podérem e deverem ser dispensados do serviço militar, entendo ser uma medida de grande alcance para o futuro d'esta provincia. Não se deve exceder esta linha: contentemo-nos com a zona comprehendida entra ella e a costa, sendo bem occupada e defendida, e com os interesses do commercio, que o gentio do interior não pôde deixar de entreter comnosco.

Já demonstrei que as occupações do interior de Mossamedes não tem valor. So a do Humbe o poderá vir a ter mui remotamente, quando subirmos, como devemos, pelo valle do Cunene, em cuja margem assenta o posto que occupâmos. N'este ponto julgo devermos tomar por limite a serra da Chella, cuja uba occidental, e o valle de Capangombe e Bumbo, offerecerão, durante muilo tempo, espaçoso campo á actividade dos colonos e emprehendedores.

    Com a exposta ordem de idéas va e de accordo a fortificação que ordenei em Maiange, centro da linha interior; está em harmonia com ellasacolonisação que procuro estabelecer em Caconda; e n'essas vistas tenciono, logo que se me offereça occasião, abrir as communicaçoes para o Bcmbe por Encoge, ligando assim os concelbos populosos-e bem avassallados dos valles do Quanza, Bengo e Dande com o norte da provincia, assim como entendo que, logoque seja possivel, se deve trabalhar no mesmo sentido, correndo de Pungo Andongo para o sul até Caconda, através do territorio, nãooccupado, do Libolo, Bailando e Bibé, e d'abi até os limites do sul do lado do Humbe.
   Devo comtudo observar que os pontos occupados n'essa linha, e as colonias militares ali estabelecidas, deverão ler por fim tomar pontos estrategicos para segurar a dominação, crear estancias para o commercio do sertão interior, e estabelecer centros de população branca, ou mesmo preta educada ao contacto dos brancos, como fóco de civilisação, sem que deva pensar-se, quanto a mim, em d'ahi tirar resultado para agricultura de generos coloniaes, a não ser em futuro muito distante.
   Occupada assim a provincia, tomadas por este modo n'esse immenso tracto de terreno as couve
mo n Ies linhas delimite, com sujeição e dominio effectivo, conviria actuar sobre a sua população para educa-la. Como porém realisar tão ardua empreza?
Já acima disse, e é obvio, que só o contacto dos brancos, e as suas relações podem educar os pretos, que convem chamar e afagar, fazendo-lhes ver que o nosso dominio não é pesado, para que elles o não evitem. É mister que o preto conheça que a auctoridade do funccionario branco é mais suave e mais benefica que a do sóba preto.
   Cumpre portanto mudar de systema, acabar com as camaras, as juntas de parochia, as com missões municipaes, os juizes ordinarios, e os subdelegados, que não têem sido no interior senão fontes perennes de vexames para os prelos. Eu mesmo observei em todo o sertão, que essas administrações e justiças de brancos desempenhadas pelos pretos, como são e não podem em geral deixar de ser, eram absolutamente odiosas tanto aos brancos como aos mesmos pretos. (Doe. n.° 25.)
É preciso dar uma boa posição aos chefes, e empregar os meios para se lhes fazer effectiva toda a responsabilidade dos seus actos, e, concentrar n'elles toda a auctoridade; podendo assim esperar-se os effeitos da acção benefica e mando que se lhes confia.
O chefe para a administração, e o padre para a instrucção e educação intellectual, moral e religiosa, eis-aqui lodo o funccionalismo que convem conservar n'esse sertão.
O chefe será juiz de paz e ordinario, será administrador e commandante militar; mas não será collector, pois entendo que essa entidade deve ser desconhecida no sertão, onde não convem pedir ao preto um real de imposto. Toda a população da provincia pagará bem o seu tributo na alfandega, concorrendo assim, mais ou menos directamente, para a producção ou para o consumo.
    Exceptuando os concelhos, onde os costumes dos pretos tenham já sido muito alterados pelo trato com os brancos, e raros são elles n'esta provincia, é minha opinião que a instituição dos sobas deve ser conservada, pois como auctoridade tradicional, é, e será sempre, a mais respeitada de todas.
   Que um grande concelho composto de muitos sobas seja dividido em divisões, e que o commandante da divisão seja o chefe dos sobas da sua circumscripção, pôde por excepção admiltir-se; mas que os prelos se entendam directamente com os sobas. Se houver alguns brancos estabelecidos nos sobados, ou gente de cor e mesmo pretos que se possam dizer educados e civilisados, esses que dependam directamente do chefe, ou do commandante da divisão, quando o haja, e não do soba; e so convirá dispensar o valor d'esta instituição quando o numero d'aquelles se tornar grande, e a sua força moral e influencia dominar a dos sobas.
    Julgo dever lembrar aqui que 5 Inglaterra e a Hollanda, habeis nações coloniaes, lêem sempre seguido com proveito o systema de utilisar, quanto possivel, as instituições dos indigenas, como já remotamente outros povos dominadores ensinaram e praticaram cm suas vastas conquistas.
   Não posso tambem dispensar-me de apresentar uma idéa que considero capital a respeito do assumpto de que se trata. Se é conveniente aceitar c aproveitar a instituição e auctoridade dos sobas, é tambem preciso educa-los e aos seus macotas; indispensavel aportugucza-los, c, como um poderoso meio de o conseguir, devemos ensinar-lhes a ler, escrever e contar em portuguez. Saibam portuguez, quanto possivel, os grandes de um sobado, que os pequenos o irão aprendendo. Se Portugal não pôde quasi com certeza crear aqui uma nação da sua raça, como creou do outro lado do Atlantico, ao menos eduque um povo que falle a sua lingua, e tenha mais ou menos a sua religião e costumes, a fim de lançar mais este novo cimento na causa da civilisação do mundo, e de tirar depois mais partido das suas relações e esforços humanitarios.
Demos pois aos pretos boas auctoridades na pessoa dos chefes, bons mestres e directores na pessoa dos padres, não imponhâmos aos sobas senão a obrigação de dar soldados para a força militar, e de ensinar a ler, escrever e contar a seus filhos,  aos de seus parentes e macotas; e deixemos que o tempo, a religião e a instrucção façam o seu dever.
Do que fica exposto, vê o governo de Sua Magestade que eu voto pela maior simplificação possivel da administração no interior da provincia, e nem podia deixar de assim pensar em vista do estado intellectual e moral da sua população. E um povo na infancia, portanto deve dar-se-lhe, mais ou menos, uma organisação patriarcha. O regimen municipal e as justiças ordinarias poderão apenas convir em dois ou tres pontos do litoral; e ainda ahi a auctoridade administrativa local deve presidir á municipalidade. Nem estão menos em desaccordo com o estado selvagem da provincia as franquezas eleitoraes. que lhe foram concedidas, dando em resultado, por um lado a decepção e a burla, por outro a desmoralisação.
E preciso pois retrogradar; não tenho duvida em affirma-lo ao governo de Sua Magestade, e sou insuspeilo, porque desde muilo moço combati pela causa das instituições que nos regem. Não posso convencer-me de que aos povos selvagens dos serlões de Africa se devam applicar as garantias e conceder as immunidades constitucionaes implantadas em Portugal em 1834, nem tambem creio que a pouca e vacillante população europea, que habita Angola, e a diminuta população indigena, que se considera civilisada, em Loanda ou Benguella, aprecie essas instituições e saiba fazer uso d'ellas.
   Julgo necessario fazer-se uma grande reforma politica e economica em Angola. Feita ella, ficarão lançados os alicerces da prosperidade da colonia, e cessarão os sacrificios por parte da metropole, ou serão de pequena importancia os que haja de fazer para realisa-la.
   Essa grande reforma deverá ser acompanhada de differentes providencias, entre as quaes passarei a enumerar as seguintes: 

1.a, a exploração scientifica da provincia, melhorando-a, no que for possivel, quanto á aclimação dos brancos nos pontos mais proprios para o estabelecimento d'estes, e com relação aos recursos mineralogicos; 

2.° uma lei que facilite inteiramente a acquisição de terras, dando, com as menores formalidades que for possivel, ao cultivador a propriedade do baldio que tiver cultivado, e ao pesquisador a da mina que houver descoberto e pozer em exploração; 

3.° providencias tendentes a facilitar a emigração espontanea do reino e ilhas, apresentando-a com as vantagens que offerece a do Brazil, e proporcionando tambem os meios á reemigração do imperio, aos que ali se acharem descontentes, adiantando a passagem nos navios de commercio, e dando-a gratuitamente nos do estado; 

4.° uma lei de melhoramento na situação actual dos funccionarios, assegurando-lhes também um futuro, sem o que a administração central não tem força no mando, nem podem aproveitar as suas mais justas e necessarias disposições, nem tão pouco se pôde esperar que o funccionario se a ÍTei coe á colo n ia, e n'el Ia se estabeleça, como convem aos interesses do paiz1

5.° uma disposição que facilite a introducção, o derramamento, a creacão e a conservação de animaes que auxiliem as differentes industrias; 

6.° a creação de um banco em Loanda, e do estabelecimento de navegação a vapor particular á costa, medida de grande auxilio geral, mas especialmente para o commercio; 

7.° a construcção de algumas estradas auxiliares das communicações fluviaes, e grande desenvolvimento de obras publicas, boje largamente possivel com o producto do imposto de 3 por cento ad valorem;  

8.° a educação e instrucção da população, attendendo a que na provincia não é possivel grande applicação ás sciencias, nem aos europeus nem mesmo aos indigenas, pois apenas convirá organisar aqui um bom lyceu, alem de algum collegio para a infancia; e os padres serão mais bem educados nos seminarios de Portugal, ficarão mais portuguezes, e continuarão a sê-lo voltando ao seu paiz, e aprenderão melhor a lingua, que depois devem aqui ensinar; 

9.° a troca de recrutamento de pretos entre Angola, S. Thomé, Cabo Verde, e mesmo Moçambique, unico meio de ter bons soldados pretos de 1.a linha n'esta provincia,,visto a propensão dos nativos para a deserção, a facilidade de a realisar, e a difficuldade de a punir, e porque, resistindo os brancos difficilmente á vida de soldado, seria esta a maneira de dispensar mais ou menos completamente o seu serviço militar, empregando-os mais utilmente, tendo tambem em attenção o preciso augmento de força de 1.a linha em harmonia com o augmento do numero dos pontos occupados na provincia, e ouIras circumstancias que o reclamam; 

10.° uma organisação geral dos diferentes serviços publicos tendente á sua maior simplificação possivel, de maneira que se empregue o menor numero de individuos, pela extrema dificuldade de os obter idoneos, a cujo respeito não me dispenso de indicar a suppressão das delegações de fazenda, substituindo-lhe o systema que vigora em Cabo Verde;

11.º, uma providencia combinada com differentes nações a bem da causa da humanidade, se este sentimento é real e unanime, prohibindo a venda de armas e polvora, objectos que alimentam o trafico da escravatura, exclusivamente fornecidos pelos inglezes e americanos, com o que ficará segura a obediencia dos prelos avassallados, e inoffensivo o gentio diante da nossa força armada; 

12.°, especialmente uma reforma no serviço judicial, de modo que os empregados do juizo de paz sejam muito interessados nas conciliações, e que n'este juizo se terminem a maxima parto dos pleitos, deixando aos sóbas decidir as questões entre filhos (vassallos) até certa alçada, embora com a conservação de prejuizos, que só o tempo e a educação poderão acabar; e deixar aos chefes, como juizes ordinarios que são na maxima parte dos concelhos(1), o decidir a maior parte das causas crimes, de modo que ás instancias superiores não subam a infinidade de processos, que hoje sobem, com grave prejuizo publico, e borrorosos vexames e injustiça para as partes; 

(1)  A antiga instituição do julgamento summario em tribunal composto pelo chefe, como juiz, do escrivao e do tendala (interprete) com voto consultivo, compreeendia a do juizo de paz, era e é adequada áquelle povo e estima por elle ; offerece as precisas garantias de justica ao paiz que tanto a carece, ordem e paz a administracao e forca ao governo.

13.°, o estabelecimento de uma estação naval a vapor, que possa auxiliar a administração nas suas relações entre os postos da costa, e que de accordo com as auctoridades dos differentes pontos responda, perante o paiz, pela completa execução das leis contra ò trafico, que comtudo pôde dizer-se acabado no territorio avassallado, salvo alguma muito rara transgressão, e que assim se poderia dizer cxtincto em toda a costa, desde 5° e 12' até 18°, cessando a humilhação que muitas vezes soffremos dos estrangeiros; estação naval, que bem organisada e bem dirigida não causaria muito maior despeza que essa abi sustentada inutilmente, porque o trafico so se faz ao norte do Ambriz,e geralmente em navios com bandeira que os cruzeiros não podem deixar de respeitar; 

14.°, a melhor organisação do serviço de saude, de sorte que abundem na colonia os facultativos e os pbarmaceuticos, animando assim os brancos a procurar aqui fortuna, certos de que se o clima não é salubre, Ibes não faltarão os recursos para se tratarem em suas molestias; 

15.°, a adopção de uma pauta geral das alfandegas, apropriada á provincia, desprendendo-se o governo de principios que, por incontestáveis que sejam na sua applicação á Europa civilisada,  são da mais duvidosa vantagem, se não de reconhecida inapplicação, na Africa selvagem; 
16.°, e finalmente essa grande reforma deve ser acompanhada, como medida da mais subida transcendencia, da fixação da boa intelligencia das leis e tratados sobre o transporte de escravos e libertos por mar entre os portos da provincia, e entre ella e a de S. Thome, a fim de que não subsista a interpretação erronea que se deu ao n.° 4.* do artigo 5.° do tratado de 3 de julho de 1842, com grave prejuizo publico, e particular das duas colonias.
Outras providencias de menor importancia poderia lembrar, que não apresentarei agora para não tornar este relatorio demasiadamente extenso, convindo apenas especialisar o estabelecimento de alguns pontos fortificados na costa, segundo o indicar um bem entendido systema de defe/a, habilitar a provincia com o material de guerra preciso e apropriado, que hoje não possue, e constituir devidamente a auctoridade elevando-a e centralisando a sua acção, porque a auctoridade-é a maior força productora em Africa. O governo da metropole deve empregar o maior cuidado na escolha do seu delegado no governo geral, e depositando n'elle toda a confiança, e demittindo-o, quando não a mereça, deve julgar e obrar pelas informações officiaes, por via de regra mais desinteressadas e sempre responsaveis, e não por indicações e insinuações incompetentes, senão malevolas e interesseiras; nem tão pouco pelas representações suspeitas, dirigidas por vias incompetentes.
   Tenho pois exposto o meu juizo e as minhas vistas a respeito da provincia que governo; e segundo ellas dirigirei portanto a minha administração, excepto quando contrariarem as disposições da lei, e as ordens do governo de Sua Magestade, que me cumpre respeitar, executando-as, ou representando respeitosamente, quando assim convier aos interesses publicos.

E agora, aindaque, como disse acima, os precedentes do governo são contrarios ao trabalho forçado nas colonias de Africa, tendo declarado, que sem elle julgo impossivel a grande agricultura colonial por emprehendimento dos europeus, a cultura civilisadora, intelligente, e verdadeiramente productiva, parece-me que não devo deixar de apresentar aqui, em conclusão do meu trabalho, algumas indicações sobre o assumpto. Se o governo de Sua Magestade se decidir a reconsiderar, como disse que seria mister, sobre muitas das providencias ultimamente adoptadas, talvez lambem se decida a adoptar algumas disposições com relação a este assumpto, onde não é por ventura indispensavel que retrograde.
 
Já indiquei como era difficil, senão é impossivel, que os colonos ou os indigenas emprehendedores podessem aqui estabelecer emprezas agricolas com trabalho livre, porque as contingencias da cultura e os lucros que produzem os generos coloniaes não lhes permiltem dar salarios que convidem a população indolente e preguiçosa a fornecer-lhes o trabalho, que precisam; assim como disse, que os poucos pretos que porventura forem laboriosos, trabalharão para si e não para estranhos. Tenho esta asserção como irrefutavel. A escravidão acha-se abolida por lei, e não é de crer que reviva, porém a lei admilte a condição de liberto, ou preto livre obrigado a dez annos de serviço em favor d'aquelle que o remiu da escravidão. Talvez d'esta sorte, apesar do praso ser curto (1), possa haver ainda uma esperança para a agricultura, se o colono ou emprehendedor agricola podér contar com esses dez annos de trabalho do liberto. Segure-se ao emprehendedor de trabalhos agricolas, mais ou menos completamente, o trabalho do escravo que remiu, sempre que esteja valido, durante o praso que a lei concede, e poderá ainda haver em Angola agricultura com algum valor. Terá porém o colono seguro o trabalho do liberto no estado actual das cousas? Não tem, porque o preto, vindo do sertão, sabe o caminho d'esse sertão, e na primeira occasião opportuna foge, ou para ali, ou para o primeiro motolo (couto de bandidos), que encontra, ou para qualquer ponto do gentio não avassallado, que não dista muito da estancia do agricultor, a quem deve o serviço (1).

1 O preto de menor idade, resgatado da escravidão no gentio, fica livre quando está educado e em estado de prestar algum servico.
   1 Veja-se a nota inseria a pag. 19 relativamente á fuga de 111 pretos, pertencentes ao cultivador de Cazengo Costa Magalhães.
A difficuldade, o problema a resolver para que haja agricultura nesta provincia, consiste em segurar ao agricultor o trabalho do seu liberto. Não será promettendo distincções honorificas, isentando os productos agricolas de todo o imposto de exportação, fornecendo utensilios, machinas e sementes, ou offerecendo valiosos premios pecuniarios; será dando aos emprehendedores segurança de braços para o trabalho que o governo de Sua Magestade promoverá a agricultura das colonias do continente africano.
Mas actualmente não ha meio de evitar tão grande mal. Não se tendo interpretado o tratado de 3 de julho de modo a não comprehender o transporte de escravos por mar entre os portos d'esta costa, nas disposições que no tratado se estatuiram a respeito das ilhas de S. Thomé, como é evidente que não são comprehendidos pela letra do tratado, e se alem d'isto se não houvesse ampliado infundamentadamente a sua applicação lilleral, comprehendendo n'ella os libertos, quando no tratado só se falia de escravos, ainda se poderia remediar, trocando os individuos do norte com os do sul. N'este caso todavia ainda a questão ficava sem resolução completamente satisfactoria para o centro da provincia, que é a parte mais importante, e os emprehcndedores ou não apparecerão, ou alguns raros que tentem, esmorecerão e abandonarão promplamente em presença de tacs difficuldades e embaraços.

Emquanto não passar muito grande numero de annos, e esse territorio comprehendido entre a costa e a linha interior de occupação acima descripta, não for domado complctamentc, e mais ou menos assimilado, emquanto ao menos os motolos, e o gentio não avassallado não deixarem de existir no meio do territorio sujeito, os libertos, vindos do interior, não offerecem ao emprehendedor agricola trabalho certo e seguro como elle precisa, e portanto não podem affluir para Angola esses emprehendedores.
O governo de Sua Magestade teria ainda um meio proficuo de promover a agricultura permittindo que os emprehendedores agricolas possam trazer libertos de paizes para onde elles não fujam, e de raças e linguas que os tornem estranhos ao gentio d'esta provincia. Foi por se darem estas circumstancias com os pretos transportados para a America, que ali se creou a agricultura tropical. Se em troca fossem trazidos para Angola indigenas americanos, ter-se-ia ella, naturalmente, estabelecido aqui do mesmo modo.
É portanto um grande meio civilisador permitlir que as provincias de Angola e Moçambique possam trocar libertos pela via maritima. Não ha n'isto a menor offensa ao tratado de 3 de julho de 1842, nem ao decreto de 14 de dezembro de 1854 e mais legislação em vigor, não ha a menor derrogação dos principios recebidos entre as nações, poisqtie se é licilo engajar pretos em África com obrigação de certo tempo de serviço, e leva-los para as colonias francezas (Doe. n.° 53), ou engajar colonos ou coolis na índia e na China com a mesma obrigação, e leva-los para as colonias francezas, hespanholas e inglezas; é ainda mais licito trazer, de uma colonia portugueza para outra da mesma nação, pretos obrigados por lei a certo lempo de serviço, findo o qual, ficam desembaraçados e poderão tomar o expediente que lhes convier.
É este um assumpto a cujo respeito o governo de Sua Magestade é livre de obrar como lhe aprouver, sem otfensa dos principios de justiça e de equidade, e pôde proceder desassombradamente sem receio de merecer censura. Assim como se trocam recrutas para o exercito, tambem se podem trocar esses recrutas para o trabalho agricola, o mais poderoso, talvez, o unico meio efficaz de civilisação para as selvagens raças africanas. Entendo pois, considerando e estudando detidamente o assumpto, que poderá talvez d'esta sorte com a legislação existente haver desenvolvimento agricola n'esta provincia.
  Aproveito esta occasião para dizer que de quasi igual medida depende todo o desenvolvimento agricola que promette o archipelago de S. Thomé e Principe. Ali so se precisa de braços, libertos, se por outro meio melhor se não obtêem, e Angola fornecer-lhe-ha largamente dos que não pôde utilisar. Deve advertir-se que Angola interessa no desenvolvimento agricola d'aquelle archipelago, porque, quando ali tenha chegado a certa altura, ha de refluir poderosa e beneficamente sobre este continente.
    Quanto porém á troca de libertos entre Angola e Moçambique, devo ainda reflectir, que este expediente so pôde ser proficuo quando em ambas as provincias haja gente pecuniosa, ou se organisem emprezas poderosas dedicadas á agricultura. Com os meios de que dispõem as pessoas, que em ambas as provincias podem hoje tentar trabalhos agricolas não lhes é possivel negociar em larga escala o serviço dos libertos trocados entre ellas, em consequencia do preço a que se elevaria a despeza de transporte; nem os armadores se animarão, como convinha, a dedicar os seus navios a tão longa navegação.
     Quando haverá porém nas duas provincias essas pessoas e essas emprezas poderosas? Tarde, sem duvida, por falta de meios, e sobretudo de impulsão protectora. Para fomentar agricultura valiosa na nossa África, na continental pelo menos, haverá inquestionavelmente necessidade de tomar-se uma medida rasgada de organisação do trabalho da população indigena, adoptando, por exemplo, um conveniente systema de servidão, do que já ha n'esta provincia uma similhança nos chamados forros, que é uma tutela rasoavel em troco de protecção condicional.

   Dou por concluido o meu trabalho. Oxalá que o governo de Sua Magestade julgue que cumpri, e n'elle encontre indicações e propostas, que mereçam ser consideradas e possam ser adoptadas com proveito da provincia e do paiz.
   Deus guarde a v. ex.a Loanda, 31 de janeiro de 1862. — Ill.mo e ex.mo sr. ministro e secretario de estado dos negocios da marinha e ultramar.= Sebastião Lopes de Calheiros e Menezes, governador geral.

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