terça-feira, 27 de dezembro de 2011

INTEGRAÇÃO DE RAÇAS AUTÓCTONES E DE CULTURA DIFERENTES DA EUROPEIA NA COMUNIDADE LUSO-TROPICAL

Gilberto Freyre no Deserto do Namibe



Aspectos Gerais de um Processo



Agradeço à Comissão Organizadora das Comemorações Henriquinas em Portugal, presidida pelo erudito Professor Caeiro da Matta, o convite extremamente honroso que me faz participar, com esta conferência de carácter universitário, nas mesmas comemorações. Agradeco a S. Ex.a o Embaixador do Brasil sua presença ilustre nesta reunião. Vejo com particular agrado, entre os presentes, homens públicos e intelectuais tão modernos nas suas idéias quanto fiéis nos seus sentimentos às melhores tradições henriquinas. Também aqui se acham homens de estudo vindos de outros países: figuras notáveis pelo saber, que estão em Lisboa para prestar homenagem à memória daquele que soube ser, em Sagres, amigo de sábios de várias procedências. Meus agradecimentos se estendem a todo o selecto público que aqui se reúne hoje para ouvir a palavra de um conferencista nada eloquente sobre um tema que, sendo principalmente técnico, não se prestaria, aliás, à retórica das orações congratulatórias. Nem sou orador nem estimo tal espécie de eloquência. Meu empenho de homem de estudo, de tal modo desejoso de independência que nem aos compromissos permanentes de cátedra ou às responsabilidades intelectuais de professor universitário se tem deixado prender - donde não ostentar titulos ou graus acadêmicos,embora não os repudie nos momentos justos, nem buscar condecorações oficiais - vem sendo, em face dos valores ibéricos, em geral, e portugueses, em particular (dos quais venho há anos me ocupando), antes o de procurar reabilitá-los contra exageros negativistas que o de exaltá-los, além da análise ou da intepretação crítica, com o fervor dos apologistas apenas líricos quando não sómente detirâmbicos.
Compreende-se assim que não agrade nem a uns nem a outros desses extremistas; e que a maior receptividade intelectual às minhas idéias e aos meus trabalhos sobre tais assuntos venha sendo antes dos meios não-ibéricos-ainda há pouco das universidades alemãs-que de alguns dos ibéricos. Meu afã tem sido-desculpai esta introdução deselegantemente autobiográfica - e continua a ser o de procurar analisar, interpretar e situar, através de uma antropologia ou sociologia que há dois meses, em Paris, o pensador Jean-Paul Sartre, ao comentar generosamente, antes de partir para o Brasil, um dos meus trabalhos, considerava existencial, valores por muito tempo julgados apenas abstractamente por uns ou sómente emocionalmente por outros; e negados ou exaltados conforme a exclusividade ou a predominância exagerada de um desses critérios. é um afã crítico, um ânimo análitico, um esforço de compreensão a que não tem faltado, admito, amor. Algum amor. Talvez, muito amor. Menos, porém - espero -, o amor que cega que o amor que concorre para esclarecer.
Uma advertência: a de que emprego o adjectivo luso-tropical para designar a comunidade de língua portuguesa, por considerar que, nessa comunidade, as predominâncias são hoje luso-tropicais. 0 próprio Portugal europeu é considerado, sob esse critério sociológico de predominâncias, um trecho da Europa tocado em seu físico pelo Trópico e colorido consideravelmente, em sua estrutura social e em sua configuração cultural, por influências absorvidas de civilizações ou culturas tropicais.
Integração de racas autóctones e de culturas diferentes da europeia na Comunidade Luso-Tropical: aspectos gerais de um processo
Integração significa, em moderna linguagem especificamente sociológica, aquele processo social que tende a harmonizar e unificar unidades diversas ou em conflito, sejam essas unidades elementos de personalidade desgarrados ou desintegrados-assunto mais psiquiátrico que sociológico-, indivíduos com relação a outros indivíduos ou a grupos, grupos com relação a outros grupos. Integrar quer dizer, na mesma linguagem especificamente sociológica, unir entidades seperadas num todo coeso, um tanto diferente da pura soma das suas partes, como se verifica quando tribos ou estados e até nações diferentes passam a fazer de tal modo parte de um conjunto, seja nacional ou transnacional, que dessa participação resulta uma cultura senão homogénea, com tendência a homogénea, formada por traços mùltuamente adaptados-ou adaptáveis-uns aos outros. Assim compreendida, a integração contrasta com a subjugação de uma minoria por uma maioria; ou-pode-se acrescentar-de uma maioria por uma minoria, contrastando também com a própria assimilação.
Sirvo-me, em grande parte, nestas considerações iniciais sobre um processo hoje tão em foco - com a crise franco-africana, principalmente - de definições, já clássicas, de Watson e de Coyle, consagradas pelo Professor Henry -Pratt Fairchild no seu Dictionary of Sociology. Em grande parte, porque, ao apresentá-las, apresento-as acrescentando-lhes palavras em que se reflectem, sendo conclusões, sugestões derivadas de um já longo estudo pessoal dos mesmos processos, no qual a matéria principal de observação vem sendo, em relação a grupos não-europeus e a culturas não-europeias, a hispânica e, dentro dessa particularização, especialmente a portuguesa em relação com os mesmos povos e com as mesmas culturas.
Assim qualificadas as expressões <>, <>, <>, vê-se que, no sistema de relações do Português com grupos não-europeus e com culturas não-europeias, embora se tenha verificado por vezes, na. história dessas relações, subjugação da mais crua de não-europeus por portugueses - que o diga o exemplo do<> - e, outras tantas vezes, assimilação da mais intencionalmente absorvente - do que é exemplo, ainda hoje, a quase glorificação, no direito ultramarino de Portugal, da figura do <> -, a tendência mais característica do mesmo sistema vem sendo no sentido da <>. Integração perturbada, quer no Oriente, quer noutras áreas de contacto do Português com não-europeus, por essas duas tendências, sem que, entretanto, em nenhuma área das mais importantes ou em nenhuma fase das mais expressivas da expansão lusitana em espaços não-europeus, essa perturbação tenha ido ao extremo de tornar o método de subjugação violenta de povos estranhos ou de sistemática assimilação de culturas exóticas a constante no sistema das relações do Português com esses povos ou com essas culturas.
É comum referirem-se historiadores, antropólogos e sociólogos ao contacto de europeus com não-europeus como expressão de um especialíssimo processo que, não chegando a ser nem de subjugação nem de assimilação, menos ainda de integração, poderia ser caracterizado como sendo, ou tendo sido, de europeização. A tendência para a europeização raramente deixou de assinalar as relações dos Portugueses com não-europeus, embora a alguns de nós pareça que o empenho da gente lusitana, ao tomar contacto com esses povos, tenha sido, quase sempre, mais o de socialmente cristianizá-las que o de culturalmente europeizá-las. 0 que talvez se deva antes a um retardamento que a um adiantamento na cultura dos Portugueses, que, a partir do século XVI ou desde esse século, vem sofrendo a competição, que em algumas áreas se tornou vitoriosa, da parte de outros europeus. Mesmo assim, criaram, no Oriente, uma Índia mais cristocêntrica que etnocêntricamente portuguesa, em Macau, uma pequena ilha socialmente cristã ou para-cristã e étnica e culturalmente sino-lusitana, no Brasil e nas Áricas, sociedades cristocêntricas em suas predominâncias de comportamento, embora de modo algum de todo portuguesas na composição étnica de suas populações ou sequer de suas élites ou na consubstanciação das suas culturas, de formas iniciais on básicas abertas a substâncias diferentes das europeias.
Que espécie de retardamento de cultura-retardamento com relação a povos europeus seus vizinhos e, desde o século XVI e principalmente desde o XVII, seus rivais, nas aventuras de expansão em espaços não-europeus - terá caracterizado o português colonizador, desde então, de tantas áreas tropicais, em suas relações com essas mesmas áreas, e Ihe favorecido, nessas e noutras áreas, uma política social de integração de raças autóctones e de culturas diferentes das europeias num todo inicialmente europeu, além de cristão, em suas próprias predominâncias de cultura, mas com tendências a homogéneo sob a forma de um terceiro tipo de cultura ou de civilização: nem o europeu nem o das populações incorporadas desde o início na comunidade luso-cristã ? Terá realmente havido tal retardamento ? Terá sido ele favorável a uma política social com relação a não-europeus e às suas culturas que nenhum outro povo europeu conseguiu, até hoje, seguir com o mesmo êxito alcançado pelo Português sob a forma de uma política de integração ?
Sou dos que admitem ter havido tal retardamento; e, por minha conta, vou além: aventuro-me a sugerir ter sido um retardamento, esse - se é que realmente houve - antes vantajoso que desvantajoso para as relações do Português com não-europeuse para a política de integração que, mais do que qualquer outra, vem caracterizando essas relações. Mais do que as violências de subjugação. Mais do que as tendências à pura ou sistemática assimilação do exótico ao castiço.
De que modo se teria retardado Portugal com relação ao adiantamento alcancado pelo Norte da Europa, ao definir-se a fase mais activa de expansão dessa Europa e da ibérica em espaços não-europeus? Ter-se-ia retardado principalmente no tocante à chamada Revolução Industrial que, quase de súbito, alterou profundamente - todos o sabemos-, naquela Europa - a do Norte -, as relações entre classes e entre indivíduos. Relações que, entretanto, continuaram na Europa ibérica, sendo as mesmas da fase mais caracteristicamente pré-industrial e pré-burguesa, outrora comum a toda a Europa cristã, mais semelhantes às daquela fase que parecidas com as da nova: nova e renovadora. Renovadora, sobretudo, das sociedades norte-europeias tornadas, pelo Industrialismo e pelo Protestantismo, além de bíblicas, isto é, partidárias da leitura e interpretação da Biblia pelo indivíduo médio e apenas alfabetizado, adeptas de uma intensa valorização não só do indivíduo, em geral, como desse individuo médio, em particular, de repente investido, por essas novas circunstâncias e por essa nova filosofia social, de responsabilidades até então desempenhadas por entidades especializadas em dirigir ou orientar o conjunto social, enquanto a gente média como que se sentia, quase toda, socialmente segura e psicamente satisfeita na sua situação de gente dirigida ou orientada.
Com as novas responsabilidades de que se viu investida, a gente média parece ter-se sentido, pelo menos durante um período considerável de tempo social, insegura; e com esse sentimento de insegurança a respeito do seu próprio valor e da sua capacidade de dirigir-se a si mesma é que teria passado a ser o principal elemento representativo não só da Europa como do Cristianismo junto a não-europeus. Sua superioridade com relação a todos esses não-europeus ostensivamente se manifestaria em suas novas técnicas de produção e industrial; e em suas noções de mensuração de tempo – no tempo cronométrico; e com relação a muitos dos mesmos não-europeus, serem, como cristãos reformados, indivíduos biblíco, alfabetizados e até literários, no sentido antropólogico da palavra; capazes, portanto, de um saber de que os analfabetizados eram incapazes. A tal superioridade corresponderia o facto biólogico de serem brancos: outra ostensiva insígnia de superioridade a distingui-los dos não-europeus rústicos, anlfabetos, pré-literários.
Seriam, porém, superioridades todas essas que precisariam de ser afirmadas, entre inferiores, por superiores não de todo de ser afirmadas, entre inferiores, por superiores não de todo seguros de ser superiores a tais inferiores. O burguês norte-europe, por vezes pedantemente bíblico no seu cristianismo reformado e enfáticamente neo-industrialna técnica de produção económica - - uma gente média -, parece ter precisado de reagir contra o sentimento de insegutança, característico, aliás, de todo indivíduo ou de todo grupo novo no poder, na cultura e na riqueza, exagerando-se nas manifestações ostensivas de sua superioridade. Uma das evidências de superioredade teria sido, para aquele norte-europeu, desde o século XVI e principalmente desde o XVII, desgarrado entre não-europeus, a que estaria a olhos vistos na sua brancura de pele e nos seus característicos de raça.
Essas especulações sobre dois passados europeus, contraditórios em cários pontos e que se manifestamram em dois comportamentos, também em vários pontos contraditórios, de colonizadores europeus em face de populações e de culturas não-europeias de espaços não-europeus, são especulações de carácter, senão sociológico, para-sociológico, que se baseiam em factos irrecusáveis, característicos dos mesmos dois passados e dos mesmos dois comportamentos e que nos permitem sugerir – ficando a sugestão a depender, para a sua maior validade como chave de interpretação sicial, de minucioso estudo histórico do assunto – Ter sido um desses comportamentos, em seus começos, característicamente pré-burguês, o outro, também em seus começos, característicamente neo-burguês. O pré-burguês – pré-burguês nas suas predominâncias e não de todo, como não eram de todo neo-burguêses dos séculos XVI ao XIX os Norte-Europeus, tendo havido entre eles até no século XIX sobrevivências de cultura pré-burguesa – ter-se-ia manifestado num sentimento generalizado de segurança do Europeu cristão em face de povos não-cristãos, reforçado em muitos portugueses e espanhóis pelo seu já consolidado triunfo de povos pré-burgueses, cavalheirescos, sobre os Mouros. Esse sentimento de segurança teria favorecido o contacto íntimo de portugueses, como europeus, com povos não-europeus e com suas culturas: contacto também favoracido pela circunstância de grande parte dos Portugueses e dos Espanhóis que começaram a se espalhar, desde o século XVI, por espaços não-europeus erem sido homens analfabetos, cristãos orais e folclóricos e não bíblicos; e, por conseguinte, em situação de muitos mais fraterna e fàcilmente se entenderem com povos não-europeus, quer dos chamados primitivos, quer dos denominados civilizados (entre os quais pouco eram os grupos sociològicamente literários), do que os homens médios da Europa do Norte: cristãos hirtamente bíblicos e inseguramente neo-burguês – além de europeus e de brancos condicionados também por essas duas situações, então novas para eles: a de cristãos bíblicos e a de burgueses – nas predominâncias das suas atitudes e do seu comportamento.
Acresce que, como povo ainda, em grande parte, predominantemente pré-burguês e pré-industrial nas suas atitudes, o Português que, a partir principalmente do século XVI, se tornou coloizador de espaços não-europeus adoptou, nesses espaços, quando neles fundou grandes plantações de cana-de-açúcar, um tipo de escravidão também predominantemente pré-burguês e pré-industrial em seus característicos; e em nítido contraste com o tipo de escravidão predominantemente industrial e burguês que seria, quase sempre, o adoptado por outros europeus nos mesmos espaços. Desse pré-burguesismo, assim como de outros factores que não interessa aqui considerar, resultou, evidentemente, um sistema especialíssimo de relações de senhores com escravos nos espaços não-europeus marcados pela presença portuguêsa; e à sombra do qual foi possível a tendência para a subjulgação de não-europeus por dominadores europeus e o próprio pendor para a assimilação de não-europeus num tipo inflexìvelmente europeus de civilização. Tais tendências, porém, se adoçaram frequentes vezes, numa outra tendência para a integração de dominadores e de dominados, de brancos e povos de cor, de europeus e não-europeus num novo tipo de sociedade e num novo tipo de civilização, caracterizado pela presença, nessa terceira sociedade e nessa terceira cultura, dos povos de cor e das culturas não-europeias. Não só presença: participação.
Já procurámos considerar o caso particularmente brasileiro de interpretação da tradição henriquina de seguro social dos cativos, dando-se oportunidade de ascensão a muitos deles. Consideremos, agora, o assunto em alguns dos seus aspectos gerais, sem nos afastarmos, entretanto, desse expressivo exemplo.
A preocupação com a segurança social dos cativos, dos trabalhadores, dos neo-cristãos, vindos de culturas onde civilizações tropicais, diferentes das europeias, caracterizou, nos seus dias por assim dizer castiços, o sistema tanto português, em geral, como brasileiro, em particular, de escravidão antes patriarcal do que industrial: a utilizada por portugueses e, independente o Brasil do Estado mas não da comunidade ou da cultura predominantemente portuguesa, por brasileiros, na colonização agrária de regiões tropicais. Sistema que, com todas as suas falhas, contribuiu para a integração não só do Português no Trópico, como do nativo do Trópico nos estilos de vida levados da Europa a regiões tropicais pelo Português, em particular, e pelo Hispano, em geral.
Note-se que, no Brasil, até o fim do século XIX se conservou, com a relativa protecção do escravo pelo senhor patriarcal, de modo afectivo e familiar -e com o compadrio a ligar até senhores e escravos -, um sistema de seguridade social condicionado pelo tipo patriarcal, doméstico, persistentemente árabe, renitentemente pré-industrial e pré-burguês, de escravidão. 0 tipo de escravidão que o Português adoptara do Mouro para, sobre essa técnica de trabalho e, principalmente, sobre esse sistema de relações entre europeus e grande parte de não-europeus - os cristianizados -, desenvolver sua expansão nos Trópicos.
Na África e no Oriente, a extinção como que prematura do regímen patriarcal de escravidão não permitiu que se processassem do mesmo modo que no Brasil nem a integração do não-Europeu pelo Europeu em ambiente familiar, patriarcal doméstico, nem a protecção do trabalhador não-europeu pelo senhor europeu ou cristão. 0 facto de se ter o regímen de trabalho escravo, de feitio patriarcal e adoçado por uma inspiração cristã vinda do Infante, prolongado no Brasil até o fim do século XIX parece a alguns de nós, investigadores do assunto, ter representado evidente vantagem para a consolidação, no Brasil, de um tipo luso-tropical de civilização, quase sempre caracterizado, quer pela protecção do escravo pelo senhor, quer pela oportunidade concedida ao escravo de concorrer para um novo tipo de convivência, com valores e técnicas especificamente tropicais.
Pode-se afirmar do método de integração de não-cristãos em sistema luso-cristão de convivência, através da escravidão de tipo patriarcal, com a condição de escravo modificada ou adoçada pela de afilhado do senhor, que, tendo sido um método de assimilação cultural e de protecção social inaugurado pelo Infante D. Henrique no século XV, se prolongou no Brasil, ainda mais do que na África e no meio de deformações e de deficiências consideráveis, até o século XIX. A despeito de todas essas deformações e de todas essas deficiências, foi graças principalmente a esse método que, dentro do sistema brasileiro de organização patriarcal de economia, de sociedade e de cultura, se processou a integração do Africano, escravo ou descendente imediato de escravo, num tipo de comunidade ou de sociedade e num estilo geral de cultura - comunidade e estilo predominantemente euro-cristãos - de que ele, de ordinário, o mesmo africano passou a sentir-se participante.
A instituição do afilhado, a do dote, o compadrio agiram poderosamente, no Brasil e noutras áreas de formação portuguesa, no sentido de tornar possíveis relações de tal modo afectivas, de tal maneira complexas - subtilmente psico-sociais até - entre senhores e escravos e entre descendentes de senhores e descendentes de escravos e, também, a favor da ascensão dos indivíduos e subgrupos socialmente mais fracos, favorecidos, nessa ascensão, pelo socialmente mais forte, que a fórmula <>, proposta por alguns para o esclarecimento ou a interpretação do desenvolvimento social brasileiro, resulta mecânica, simplista e inadequada. A interpretação do mesmo desenvolvimento social brasileiro pelo complexo Casa -Grande & Senzala - preferida por outros analistas desse desenvolvimento - está longe de ser apenas uma nova expressão verbal ou simbólica dessa fórmula. é mais compreensiva do que ela pela importância que atribui a um conjunto de relações criadas não apenas pela subordinação de escravos a senhores no plano da actividade económica e da hierarquia social, mas por uma vasta e subtil interpenetração de atitudes, valores, motivos de vida, estilos de cultura - os senhoris e os servis, os europeus e os não-europeus - condicionados por um tipo patriarcal de convivência, particularmente favorável a tal interpenetração.
Desse tipo patriarcal de convivência é que se pode afirmar ter nascido com a política social de integração de não-europeus em sistema luso-cristão e, dentro desse sistema de protecção a neo-cristãos, inaugurada no século XV pelo Infante D. Henrique, ao procurar dar sentido amplamente cristão às primeiras relações entre cristãos e não-cristãos, entre europeus e não-europeus - e não apenas entre senhores e escravos - na África ocupada pelos Portugueses e entre os portugueses que acolheram em suas casas patriarcais os primeiros cativos vindos da África. Desenvolveu-se o sistema no Brasil; mas a sua origem parece a alguns de nós inconfundível: a política inaugurada pelo Infante no remoto século XV.
Venho sugerindo neste ensaio, já demasiado longo para os seus modestos objectivos, que as normas de segurança do trabalhador cativo e de integração desse cativo ou desse trabalhador, quando exótico ou de origem exótica, no sistema português patriarcal e cristão de família e de sociedade, traçado pelo Infante D. Henrique, informaram, em grande parte, o desenvolvimento dos métodos escravocráticos de protecção do escravo pelo senhor e de incorporação do mesmo escravo à família patriarcal do mesmo senhor seguidos pela gente lusitana na sua consolidação sócio-económica em áreas tropicais. Principalmente no Brasil.
Que esses métodos, de possível origem maometana mas cristianizados de todo pelo Infante, distinguiram o sistema escravocrático luso-tropical dos demais sistemas de escravidão euro-tropicais, parece-me evidente. São muitos os depoimentos de estrangeiros idóneos que assinalam tal diferença, em face de uma maior benignidade - destacada por esses estrangeiros da parte de portugueses e de brasileiros estabelecidos patriarcalmente em áreas tropicais com fazendas e engenhos, com relação a seus escravos, vários dos quais tornados pelos patriarcas de casas-grandes, pessoas de casa, tratados pela gente senhoril como membros da família e feitos participantes integrais, senão das crenças católicas, dos ritos católicos, de baptizados, de crisma, de casamento, de morte, da liturgia da Igreja e das principais normas cristãs de comportamento e de convivência.
A não poucos desses escravos no Brasil, quer colonial, quer imperial, foram dadas, dentro da tradição henriquina, oportunidades de ascensão social pelo casamento e pela instrução, iguais ou quase iguais, às que se concediam aos filhos brancos das famílias a que pertenciam sociològicamente os cativos.
Não são poucos os depoimentos idóneos que registam tais facilidades, mercê das quais numerosos filhos de escravos, de indivíduos nascidos escravos, se tornaram, na sociedade brasileira, rivais de brancos senhoris, ou de origern senhoril, nas funções que Ihes foi dado desempenho e no prestígio que alcançaram através do desempenho de tais funções.
Em trabalho universitário de mocidade, escrito e publicado em língua inglesa, procurei salientar alguns dos aspectos que parecem ter diferenciado o sistema escravocrático brasileiro e não só é a caracterização válida para o sistema que se possa denominar brasileiro, em particular, como para o português, em geral - dos demais sistemas escravocráticos seus contemporâneos, através de uma maior beniguidade da parte dos senhores nas relações com os escravos. Sugeri mais que essa benignidade se afirmava na comparação do tratamento do escravo tipico das áreas de formação portuguesa - típico porque vários foram os escravos, não só no Brasil, como em Angola e em Moçambique, vítimas de maus senhores - pelo senhor brasileiro ou português típico e a cuja família o mesmo escravo sociològicamente pertencia - com o tratamento recebido de industriais pelos operários, nas fábricas europeias - principalmente inglesas - dos primeiros decénios do século XIX. A tese, na sua primeira parte, foi, senão impugnada, posta em dúvida por um generoso intérprete do que se pode considerar a filosofia de história que meus trabalhos sugerem: o Professor Lewis Hanke, neste particular seguido recentemente pelo também professor James Duffy.
Não me parece, porém, que os eruditos de Harvard tenham apresentado um só argumento que de facto comprometesse aquela tese. Sua atitude é a de quem, sem conhecimento especializado do assunto, reluta em aceitar uma <> difícil, com efeito, de ser compreendida sem um estudo das particularidades que a explicam histórica e sociològicamente.
É essa benignidade que me parece, hoje, dever ser associada às normas de segurança do trabalhador e de integração do cativo exótico ou de origem exótica num sistema luso-cristão de sociedade ou de comunidade traçadas pelo Infante D. Henrique. 0 exemplo maometano de escravidão doméstica, familiar e patriarcal, não Ihe teria sido estranho. Mas ele soube traçar, de modo nítido e inconfundível, uma política caracterìsticamente cristã e portuguesa de relações de cativos com senhores, de africanos com europeus, de que evidentemente se impregnou grande parte do sistema de colonização portuguesa em sua tendência para se tornar a despeito do regime de trabalho escravo que por tanto tempo vigorou nas áreas sob seu domínio, um sistema integrativo. Embora tenhamos de admitir graves desvios do espirito henriquino no desenvolvimento desse sistema - Afonso de Albuquerque chegou a ser, neste particular, na Índia, uma espécie de anti-Henrique - a verdade é que as normas henriquinas se estenderam da Europa vizinha da África negra aos trópicos mais distantes, marcados pela presença portuguesa. Principalmente ao Brasil.
Ainda há pouco, lendo o livro, publicado em Londres em 1878, em que os ingleses C. Barnington Brow e William Lidstone registam suas observações do Brasil que conheceram já no fim da era escravocrática, deparo, à página 26 de Fifteen thousand miles on the Amazon and its tributaries, com este depoimento - mais um depoimento a ser acrescentado aos vários que já se conhecem sobre o assunto - a respeito de uma típica fazenda patriarcal por eles visitada no Norte do então Império: <> but spoke of them always as belonging to his household.>> 0 método henriquino em pleno vigor no Brasil escravocrático da segunda metade do século XIX.
Assim se explica - pela sobrevivência, pela persistência, pela permanência na sociedade, escravocrática é certo, mas, ao mesmo tempo, patriarcal do Brasil do século XIX, de normas de tratamento de escravos por senhores vindas de D. Henrique - o facto de ter havido, com efeito, no Brasil, um regímen de escravidão que de ordinário ou em parte foi uma escravidão antes doméstica que agrária ou agrário-industrial; uma função de organização familiar que condicionava a actividade económica, base sòmente material de sua existência e não apenas expressão dessa actividade económica independente daquela organização: uma organização rocada de sugestões cristãs, influenciada pelo apreço, da parte dos seus dirigentes, por valores dos chamados espirituais; conservadora de normas de contacto de brancos com pretos inauguradas pelo Infante.
Não se nega ter o puro afã de dominação política ou de exploração económica tomado por vezes exagerado relevo no jogo de relações de portugueses da Europa com não-europeus. Em certas fases ou circunstâncias tem chegado esse afã a comprometer aquelas constantes de política social. Não digo, nem nunca ousei dizer, do Português europeu que vem sendo um povo perfeito em sua política social com não-europeus. 0 que é digno de atenção nessa política é a sua constância - a constância da sua relativa benignidade - a despeito das imperfeições.
Mais do que nunca saberá de certo o Português conservar-se fiel às inspirações henriquinas, em vez de procurar, já agora arcaicamente, seguir, naquelas relações, normas de povos estritamente europeus - e o Português, sobretudo depois de D. Henrique, não é povo estritamente europeu - com não-europeus. Seria um desvio perigoso de tradições vindas dos dias daquele príncipe e desenvolvidas principalmente no Brasil: uni Brasil tão henriquino no seu desenvolvimento em democracia étnica e em democracia social.


Fonte: FREYRE, Gilberto. Integração das raças autóctones e de culturas diferentes da européia na comunidade luso-tropical: aspectos gerais de um processo. Lisboa: Congresso Internacional de História dos Descobrimentos, 1961. 15p.

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