terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Angola colonial: A igreja na luta pela instrução e a independência

 

Foto/Angop
<b>O músico, compositor e poeta Filipe Zau</b>
Filipe Zau |* - 29 de Março, 2011
Quando a administração colonial, após o início da luta armada em Angola, pôs fim à Lei do Indigenato, incrementou a rede de escolas públicas e procurou aumentar o número de professores, alterou de forma significativa o índice de escolarização na colónia, sem que essa evolução positiva tivesse satisfeito as necessidades de aprendizagem da maioria da população angolana, nomeadamente, em áreas rurais.
Entre 1964 e 1969, formavam-se, em média por ano, nas escolas do magistério existentes, cerca de cem professores primários, o que era manifestamente insuficiente.
Em 1973, o número de alunos, em todo o ensino primário, correspondia a 512.942, um terço dos quais portugueses. Apesar do enorme esforço levado a cabo pela administração colonial, de um momento para o outro tornava-se impossível recuperar o tempo perdido. Para além disso, os sistemas educativos são incapazes de dar respostas imediatas e eficientes às expectativas políticas de curto prazo. A formação de professores e gestores educacionais de qualidade é sempre demorada e, como refere António Nóvoa, “não há ensino de qualidade, nem reforma educativa, nem inovação pedagógica, sem uma adequada formação de professores”.

Um ensino religioso

Salvo as iniciativas levadas a cabo pelo manicongo Mvemba-a-Nzinga de formar núcleos escolares no reino do Congo, em Angola não havia uma tradição de ensino sistematizado e o número de pessoas cultas ou que desejavam cultivar-se era ínfimo. A maior parte dos portugueses residentes em Angola passava os anos a amealhar um pecúlio que lhes permitisse viver desafogadamente na metrópole, de onde, muitas vezes, não saíam as mulheres, nem os filhos.
No início do século XIX, as missões encontravam-se em franca decadência, sendo, em 1834, extintas as ordens religiosas. Por essa altura, em Luanda, só havia um padre capuchinho e um carmelita.
Antes da primeira metade do século XIX, o ensino estava entregue aos jesuítas e o esforço para estabelecer o ensino público foi infrutífero. De recordar que, pela Lei de 3 de Setembro de 1759, o marquês de Pombal mandou extinguir a Companhia de Jesus, o que colocava, desde logo, os ensinos primário, industrial e agrícola sem mestres e ao abandono. O decreto de 15 de Dezembro de 1856 abriu novas oportunidades aos sacerdotes europeus para paroquiar nas igrejas de Angola e Moçambique, proporcionando, entre outras regalias, passagens, ajudas de custo, aumento de gratificações e um excedente para o serviço de ensino.
No dia 7 de Abril de 1857, o Conselho Ultramarino, que havia incluído o apostolado missionário nas suas actividades, abriu concurso para o provimento das diferentes igrejas de Angola. Os párocos serviam durante oito anos, eram colocados em freguesias do litoral e do sertão angolano e, cumulativamente, exerciam o ensino primário.
Em resultado deste concurso chegaram a Angola, em 1858, os primeiros oito párocos europeus para serem colocados nas paróquias do Bembe, S. José do Ambriz (cuja ocupação militar se havia confirmado, apenas, em Maio de 1855), Huíla e Cassange, nas freguesias de S. João Baptista de Gazengo, Santo Hilarião do Golungo Alto, Benguela e Pungo Andongo. No novo concelho de Malange foi colocado um cónego africano, de nome Necessidades, que ali veio a falecer em Junho seguinte.
No dia 14 de Abril de 1861, tomou posse da Diocese de Angola o Bispo D. Manuel de Santa Rita Barros, que desembarcou em Luanda, no dia 2 de Setembro, trazendo consigo párocos, cónegos, professores e 12 ordinandos, uns do Seminário Patriarcal e outros do Seminário de Cernache do Bonjardim, com destino à frequência do Seminário Diocesano, que, nos princípios de Novembro, abriu no Edifício do Paço, antigo Colégio de Jesus. Em relatório apresentado pelo padre José Maria Antunes, em 1 de Dezembro de 1894, levado ao exame da Junta Geral das Missões, estas deviam distanciar entre si, em média um grau no sentido ocidente-oriente e dois graus no sentido norte-sul.
Havia, à época, ainda segundo Martins dos Santos, quatro centros de missões já solidamente estabelecidos: Malange e Caconda, desde 1890, Cassinga (1886), e Huíla (1881). Malange era a missão central e dali irradiaram os missionários para fundarem as missões do Libolo (1893), Mussuco (1900), Bângalas (1913), Cacuso (1925), Minungo (1929), Saurimo (1930), Mussolo (1937), Salazar (Ndalatando) (1937), Dembos (1938), Dundo (1940), Cazanga (1941), Lombe (1946), Chiengue (1950) e Quibala (1951).
De Caconda irradiaram para estabelecer as missões de Cachingues (1892), Bailundo (1894), Vila da Ponte (1894), Huambo (1910), Sambo (1912), Cúchi (1912), Galangue (1922), Mupa (1923), Ganda (1927), Omupanda (1928), Bimbe (1929), Quipeio (1933), Balombo (1933), Andulo (1933), Silva Porto (Cuito) (1934), Nova Lisboa (Huambo) (1935); Caála (1935), Nova Sintra (1936), Entre-Rios (1939), Cuamato (1940), Caiundo (1940), Vila Junqueiro (1940), Baixo Cubango (1940), Chinguar (1942), Canhe (1942), Mungo (1948), Bela Vista (1948), Bundas (1950) e Nharea (1950).
Da Huíla, as missões do Jau (1889), Chivinguiro (1892), Quihita (1894), Gambos (1897), Munhino (1898), Chipelongo (1902), Vimania (1902), Chiúlo (1916), Sá da Bandeira (Lubango) (1935) e Quilengues (1938).  De Lândana, as missões de Cabinda (1891), Luáli (1890-1892), Lucula (1893), Lunuango (1902), Maiombe (1922), Santo António do Zaire (1930) e Ambrizete-Tomboco (1935).
Em 1901, destacavam-se os padres do Espírito Santo, que tinham a seu cargo, na então colónia de Angola, as missões seguintes: Lândana, Cabinda, Luáli, e Lucula, no distrito do Congo. Luanda e Libolo, no distrito de Luanda. Malange, Canâmboa e Mussuco, no distrito da Lunda. Caconda, Bailundo, Bié, Catoco, Cassinga e Massaca, no distrito de Benguela. Huíla, Munhino, Chivinguiro, Jau, Quihita, Gambos, Cubal e Cuanhama, no distrito de Moçâmedes.

O clero nativo

Afirma também Martins dos Santos, que as tentativas para remediar o défice de missionários com a ordenação de um maior número de sacerdotes africanos, acabaram por não corresponder às expectativas, uma vez que eram considerados incapazes de exercer a influência necessária junto dos seus compatriotas. “Estes viam-nos com certa desconfiança, considerando que fossem mandatários servis dos brancos, membros renegados e degenerados da sua raça ou da sua tribo”. Os europeus não aceitavam a orientação religiosa dos padres nativos, consequentemente, os seus ensinamentos eram menosprezados.
De facto, a preparação eclesiástica do clero nativo era deficiente, já que as aulas e os próprios cursos não funcionavam com regularidade, uma vez que não existia seminário. Chegou-se a acusar o bispo de ordenar padres que liam mal e compreendiam o latim litúrgico com dificuldade. Os sacerdotes africanos eram pura e simplesmente considerados analfabetos, o que os fazia sentir diminuídos face aos seus colegas europeus. Estes, por sua vez, não se mostravam razoáveis e compreensíveis. Bem pelo contrário, acentuavam mais as diferenças que os separavam dos sacerdotes africanos que sentiam ainda a dificuldade de se divorciar dos seus hábitos e costumes culturais, alguns deles, incompatíveis, na altura, com a forma de estar exigida pela Igreja Católica. Como Angola não possuía condições que permitissem a preparação intelectual e religiosa dos candidatos ao sacerdócio, procurou-se ultrapassar este obstáculo enviando jovens seminaristas para a Europa e Brasil.
O decreto de 23 de Julho de 1853 criou o Seminário Episcopal de Luanda com o fim de apoiar as dioceses de Angola e S. Tomé, servir de hospício aos missionários e suprir a falta de liceu e demais aulas públicas. Mas apenas no dia 29 de Junho de 1910, D. João Evangelista de Lima Vital conferia ordens de presbítero a dois alunos do seminário diocesano, ambos negros, os primeiros de um primeiro viveiro eclesiástico. Em 50 anos, apenas cinco padres tinham sido ordenados em Angola.

Acordo missionário

Em 7 de Maio de 1940 foi assinado na cidade do Vaticano, pelos plenipotenciários do Pontífice Pio XII e do Presidente da República Portuguesa, a Concordata, para a metrópole e, integrada nela, o Acordo Missionário, para o Ultramar. Este nos seus artigos 3º, 6º, 66º-69º e 81º fala de “indígenas”, “população indígena”, “pessoal indígena”. O artigo 66º estabelece que o “ensino especialmente destinado aos indígenas deverá ser inteiramente direccionado ao pessoal missionário e aos auxiliares”. Permite o uso da “língua indígena” somente no ensino da religião (Art.69º). A Concordata tolerava, de “harmonia com os princípios da Igreja”, o uso da “língua indígena” no ensino da religião católica (Art.16º). A mesma Concordata discriminava escolas para os indígenas e europeus (Art. 15º) e destacava a “evangelização dos indígenas” (Art.º 19). Mais tarde, a Lei do Indigenato entendia o uso dos “idiomas nativos” no ensino somente como instrumento de difusão da língua portuguesa: “O ensino a que se refere este artigo procurará sempre difundir a língua portuguesa, mas, como instrumento dele, poderá ser autorizado o emprego dos idiomas nativos». [LEI DO INDIGENATO, Decreto-Lei nº 39.666, suplemento ao Bº 22, 1ª série, de 31/05/1994, art. 6º, § 1].
Estes e outros factos tiveram influência na posição pró-independentista de uma parte do clero africano: o cónego Manuel das Neves e os padres Joaquim Pinto de Andrade, Martinho Samba Lino Alves de Guimarães e Domingos Gaspar, que foram presos pela PIDE. Igual destino teve o cónego Manuel Franklin da Costa e os padres Vicente José Rafael e Alexandre do Nascimento, que também foram nesse ano exilados para residirem em instituições religiosas na metrópole.
A prisão do cónego Manuel das Neves, no dia 21 de Março de 1961, deixou o Arcebispo de Luanda, D. Moisés Alves de Pinho, bastante preocupado: “Para os africanos, tudo o que não seja protestar contra a prisão de padres nativos e de numerosos leigos detidos pela PIDE, tudo o que não seja reconhecer-lhes direito à independência, e isso já, sem demora, desagradará. Quanto ao elemento europeu, por sua vez, desejará a afirmação sob o ponto de vista governamental, desejará a consagração da política de integração. Não o fazendo vamos passar por estar incondicionalmente ao lado dos africanos e contra o Governo.”
Os sacerdotes exilados entregaram ao Núncio Apostólico em Lisboa, em Outubro de 1963, uma missiva onde diziam o seguinte: “nós sabemos que a emancipação de Angola se há-de efectivar, cedo ou tarde, com ou sem a Igreja. Porém, ­perante este dilema, sem deixarmos de ser angolanos, o nosso sacerdócio não tolera a indiferença, tanto mais que a perspectiva “sem Igreja” facilmente se converte em “contra a Igreja”, quando em situações idênticas, a Igreja não se insere, no momento devido, mediante os seus cristãos nos “ventos da História”. Neste espírito de apostolado, sofremos a prisão, o exílio, as torturas físicas e morais, as incompreensões, o desprezo, as acusações tão falsas como ignóbeis, as difamações mais maquiavélicas, o abandono e as restrições nas próprias liberdades sacerdotais. E esta situação eterniza-se sem esperança de solução.”
  
O ensino público


Complementarmente aos 100 professores primários anualmente formados, eram, também, em cada ano, preparados 200 “monitores escolares”, que tinham como habilitações literárias apenas a 4ª classe. Em 1971, estes “formadores” correspondiam a mais de dois terços de todos os docentes existentes nas zonas rurais. Um pouco melhor preparados para a docência estavam os “professores de posto”, que também eram escassos para cobrirem as necessidades da instrução primária em Angola. Nesta conformidade, facilmente se reconfirma que, desde a implantação do ensino oficial em Angola, a 14 de Agosto de 1845, até ao início da luta armada em 1961, o ensino primário não estava dirigido às populações africanas, salvo para os que estivessem minimamente associados a uma matriz cultural urbana.
Durante o Governo de Transição, através do decreto de 25 de Junho de 1975, foram revistos os vencimentos do pessoal docente do ensino primário em Angola. Segundo Martins dos Santos, “(…) deu-se satisfação a velhas aspirações, aumentando o vencimento a auferir e subindo estes servidores públicos na escala do funcionalismo. A publicação deste diploma era a prova cabal de que, até então, se não tinha querido a sério resolver certos problemas, mantendo um sistema injusto e revoltante, que de algum modo contribuiu para o desprestígio e aviltamento da classe. Merecem ser fixados os nomes dos governantes que intervieram na elaboração do decreto e que o subscreveram: Johnny Pinnock Eduardo, primeiro vogal do Colégio Presidencial; Lopo Fortunato Ferreira do Nascimento, membro do Colégio Presidencial; José N’Dele, também membro do Colégio Presidencial; Jerónimo Elavoco Wanga, titular do Ministério da Educação e Cultura; Saidy Vieira Dias Mingas, do Ministério do Planeamento e Finanças; António da Silva Cardoso, Alto-Comissário de Portugal em Angola”.

*Ph. D. em Ciências da Educação e Mestre em Relações Interculturais

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