quinta-feira, 19 de abril de 2012

LUANDA , edifício e modos de vida, na pena do autor do Livro "Quarenta e cinco dias em Angola"



Luanda. Uma linda panorâmica da cidade hà mais de 150 anos
(foto Era Uma Vez...Angola, Paulo Salvador, in Pissaro site)


Transcreve-se na íntegra algumas páginas deste livro:


"....É tempo de fazer a descripção da Cidade de S. Paulo de Loanda. A Capital da Provincia d'Angola acha-se situada a 23 — 8 graus de latitude sul, no fundo de uma grande bahia formada pelo continente e pelas ilhas de Loanda e de Cazeange, grande orla d'areia de uns quatrocentos melros de largura, que corre parallelamente á costa, desde as proximidades do Coanza até ao moiro das Lagostas, na extremidade norte da cidade. E' n'estas ilhas que moram os Muxiloandas , raça de pretos que se occupam unicamente da pesca. Existem alli modernas casas de campo, mandadas construir por alguns negociantes de Loanda, e um elegante deposito para os mantimentos da estação americana. 

Vista da bahia, Loanda apresenta um lindo pano- rama, devido á configuração do terreno em que está edificada, e que muito se parece com Setúbal. O aspecto da vegetação é encantador, sobretudo para europeus que não estejam afeitos a ver sitios onde brotem plantas tropicaes, e cujo tom verde é tão agradável á vista, que apenas podemos comparal-o ao do nosso linho de prado. Os palmares, os coqueiros, os tamarinheiros, as cajueiras, as bananeiras, as mangueiras, e muitas outras arvores, cujos nomes me não occorrem agora, dão á cidade e a seus arrabaldes um colorido tão bello, que mal se pôde acreditar que alli em vez de ar puro e saudável, só se respirem miasmas pestilenciaes. Da mesma forma que em quasi toda a costa africana, o terreno em que Loanda se acha edificada é areento, misturado de barro vermelho e amarellado.

A Capital divide-se em cidade baixa e cidade alta : a cidade baixa, a — commercial — é construida sobre uma restinga de areia que parece ter sido formada pelo assoreamento de parte da bahia, onde as aguas mortas não tinham, por causa do pequeno cabo da fortaleza, a necessária corrente, e pelas terras acarretadas da cidade alta nas occasiões de grandes chuvas. Estes assoreamentos vão augmentando sempre, e dimi- nuindo consideravelmente a área da bahia. Os navios d'alto bordo, que d'antes se aproximavam muito da terra, fundeiam actualmente a uma distancia talvez su- perior a mil e quinhentos metros do cases. A cidade alta fica situada sobre um monte cortado a pique, que circunda a baixa em toda a sua extensão. A differença de nivel entre as duas partes da cidade é proximamente de setenta metros, o que as tornaria quasi incommunicaveis, se não fossem duas fortissimas rampas, construidas sobre muros de supporte, nos dous pontos mais accessiveis da cidade alta. Loanda deve ter hoje perto de onze mil almas, sendo a maior parte de seus habitantes de raça preta e mestiça. A cidade baixa contém grande numero de casas; algumas d'ellas, ainda que construidas sem elegância, e sem gosto algum architectonico, denotam terem sido edificadas em tempos remotos por alguns nobres des- contentes da sua sorte, e que áquellas praias foram ten- tar fortuna nos azares da guerra ou nos do negocio licito d'aquelle tempo. 

As modernas construcções, apesar de muito mais regulares do que as antigas, deixam ainda muito que desejar. É no centro d'esta parte da cidade que se acha a igreja de Nossa Senhora dos Remédios, templo mal conservado e de pobríssima apparencia, mas que gosa das honras de Sé nova, desde que a antiga passou a servir de curral ! Em qualquer aldeia do nosso Minho, se encontra uma igreja com mais aceio e esplendor, do que em Loanda, e isso não é para estranhar attendendo ao pouco uso que d'ellas se faz. Ainda não encontrei terra, por mais desmoralisada que fosse, onde se cumprissem menos os preceitos da nossa religião. As próprias mulheres, que por natureza são sempre mais inclinadas ás práticas religiosas, essas mesmas pouco ou nada frequentam os templos! Geralmente, em toda a Africa, tractam mais do corpo, do que da alma. Ha tal, que de manhã negaria uma libra para as obras da igreja, em quanto que de tarde perderia um conto de reis ao monte. Não sei se a desmoralisação das nossas possessões é devida á falta de bons parochos, se aos maus exemplos que alguns teem dado ; o que é certo, é que geralmente a gente branca tem os padres em pouca consideração, e talvez que também para isso concorra pertencerem muitos d'estes á raça mestiça. Notei sempre nos pretos maior predilecção pelos ecclesiasticos do que nos brancos, mesmo os mais rústicos, e varias pessoas me afirmaram, que o primeiro cuidado do preto do interior, quando apparece alguma expedição militar, é de perguntar se vem padre. Muitos pretos vivem e morrem sem baptismo, por não ter havido padres que se dedi- cassem a percorrer o interior, a fim de instruir uma infinidade de creaturas, das quaes se conseguiria muito mais com a cruz, do que com a clavina. Ignoro se o novo Bispo, que dentro em breve deve seguir viagem para Angola, terá força sufficiente e poderá dispor dos meios necessários para reformar os templos da sua diocese, entregal-os a parochos honestos e dedicados, e tractar seriamente da propaganda religiosa. Dizem-me que lhe não falta talento e boa vontade : isto já não é pouco, mas terá elle animo bastante e saúde para resistir a um clima tão mau e tão desanimador? Deus o queira. Persuado-me que foi um erro enorme, a abolição dos conventos no Ultramar. Dessem-lhes embora uma organisação mais adequada ao paiz, e ao lim a que se deveriam propor, mas da sua conservação se colheria o maior proveito, tanto para a Provincia, como para o Estado. Verdade é, que os frades mandados dos nossos conventos nem sempre eram de exemplar conducta, mas isso mesmo seria fácil de remediar na occasiao em que se aboliram as ordens religiosas, porque é provável que d'entre tantos indivíduos que por ahi ficaram ao desamparo, muitos acceilassem passar para o Ultramar se lh'o tivessem proposto. 
Quando medito no passado, vejo que ás ordens religiosas se deve a maior parte de tudo quanto na Africa ha, ou houve soffrivel. Os Jesuítas construíram em Loanda um bello templo e um grande convento, onde os pobres recebiam a educação, e que hoje se acha transformado em Palácio episcopal. Foram elles que, pelas missões, espalharam no seio de immensas povoações selváticas, o gérmen do catholicismo, que tão enraizado ficou no coração d'aquella gente, que apesar de terrem decorrido cerca de trinta annos sem que os ministros de Christo tornassem a apparecer entre elles, ainda hoje pedem padres, desejam ser baptisados, e cederiam de boa vontade a algumas exigências nossas, se houvessem governadores de districto, bastante intelligentes e desinteressados, para dispender alguma quantia na reediicação dos primitivos templos, que o tempo e o abandono reduziram a ruinas ! Para prova da fé viva e profundo respeito, que aquelles povos consagram á nossa religião, bastaria talvez lembrar que em vários silios onde as igrejas desabaram, e onde ha muito por falta de padres se não exerce o culto divino, tem os pretos, apesar do grande apreço pelos objectos de prata, guardado escrupulosamente todos os adornos, e alfaias que os nossos Bispos e Governadores para lá lhes mandaram no tempo em que os seus rendimentos eram mais avultados. E' realmente para estranhar que o Collegio do Bombarral, destinado para as missões, não tenha enviado para Angola ministros da religião, que incalculáveis serviços prestariam á civlisação e á humanidade. No interior, grande numero de povoações onde nunca chegaram a apparecer os nossos pregadores, conservam ainda as crenças barbaras e fanáticas que se assemelham ás dos Gaulezes: — é o druidismo, com pequena differença. Acreditam na metempsycose , ou transmissão da alma de uns para outros corpos; na vida eterna, passada n'um mundo de delicias, para onde a alma vôa d'este que veio habitar como prova ou castigo. Ha bastantes exemplos de pretos atacados de nostalgia que depois de transportados para a America se tem suicidado, para escaparem aos castigos d'este mundo e irem gozar a bemaventurança que no outro esperam encon- trar. Como os Druidas, também teem os seus adivinhos, — gangas — que não devemos confundir com os feiti- ceiros, por serem estes, objecto de especial aversão para o gentio. Teem igualmente curandeiros, ou distribuidores de especificos milagrosos compostos de summos de certas plantas, que descobrem a moléstia, e a sua origem pela magia, recorrendo a certos signaes mysteriosos e invocando inspirações de um ente sobrenatural que é vulgarmente o idolo, objecto das suas adorações. Fazem uso de talismans — milongos — para combater o feitiço, e tal é a superstição que ainda hoje os domina, que frequentemente celebram horrendos sacrifícios humanos, debaixo mesmo dos muros dos nossos reductos. Quando as missões não alcançassem outra cousa mais do que pôr termo a esses horriveis espectáculos, nao fariamos nós um grande serviço á humanidade? Quasi todos os conventos que ha em Loanda estão já em completa ruina; existe comtudo o de S. José a curta distancia da cidade, e n'uma situação deliciosa, que apezar de deteriorado é susceptível de grandes melhoramentos. N'esse convento é que o Governo deveria estabelecer um seminário, onde recolhesse e educasse gente natural do paiz, com o fim de percorrer o interior, e propagar até ás povoações mais longínquas a doutrina christã. D'ahi haviam dimanar os elementos civilisadores para firmar a paz tão desejada, e sem duvida alguma resultaria o engrandecimento e prosperidade dos estados Ião vastos em que ainda predominamos. Essas expedições eram mil vezes mais proveitosas, e infinitamente menos desbumanas, do que as dos soldados europeus que a ignorância dos nossos governantes votou barbaramente á miséria e soffrimento. É incontestavelmente um crime inaudito, aquelle que presenciamos dos meios que se empregam para an- gariar gente para servir no Ultramar : illudindo uns com postos d'accesso, que afinal lhes regateam com chicanas miseráveis ; a outros pintando-lhes Angola qual outro Eldorado, paiz de fadas e d'encantos; engodando outros com soldos dobrados, adiantamentos e gratificações, e finalmente empregando-se até com alguns desgraçados o terror e as ameaças ! E tudo isso para que? Para lançar nas praias d'um paiz inhospito, cente- nares de creaturas, que vão partilhar da triste sorte que as nossas leis reservam para os criminosos condemnados á pena ultima, e que a clemência real, ou a moderna civilisação commulou em degredo perpetuo. Que bello quadro de perversidade ! Não é possivel que haja coração, por mais insensivel que seja, que se não constranja, sabendo a que misero estado ficaram em tão pouco tempo reduzidos aquelles bellos corpos que d'aqui sahiram ha um anno, e que a morte tem ceifado inexoravelmente. Aspecto cadavérico, cabellos arripiados, olhar espantado, ventre in- chado, e as pernas cobertas d'asquerosas chagas, eis o desgraçado estado a que se acha reduzida a maior parte  d'aquelles infelizes, a quem a morte parece ter poupado só para lhes prolongar os padecimentos. Repetidas vezes vi alguns d'esses pbantasmas fazendo guardas. Julguei a principio que iam recolher ao hospital, mas soube depois que de lá tinham sahido; a sciencia dera-os por promptos para todo o serviço ! Quasi diariamente pela força do verão, tiveram esíes infelizes de conduzir com bastante custo e fadiga ao cemitério do Alto das cruzes, os cadáveres dos seus companheiros fallecidos no hospital. Ao recolher ao quartel, era fácil divisar no seu ar abatido e melancólico, o mau efeito que aquelle acto deve produzir no espirito enfraquecido do soldado, que ve rarear todos os dias o numero dos seus camaradas. É provável que esta ceremonia fúnebre faça parte dos regulamentos militares, mas muita cousa ha suppor- tavel em Portugal e intolerável em Angola, onde se vive constantemente debaixo de impressões aterradoras, e onde estas scenas lúgubres concorrem para mais facil- mente ser atacado das moléstias do paiz. Porque se não ha de organisar o exercito com os indigenas, que são os únicos que podem resistir á perni- ciosa influencia d'aquelle clima? Haja muito embora um corpo d'europeus, gente de confiança do Governador geral, mas que seja um corpo fixo, e não o obriguem a sahir da capital e a entranhar-se nos matos do interior, onde vão acabar de perder o garbo e energia que mal se podem conservar ainda assim em Loanda. O preto depois de fardado e disciplinado é um excellente soldado. O espirito de corpo domina-o do mesmo modo que os brancos; e nas expedições que se teem feito nota-se que não é elle o que melhor tracta os gentios. Tive occasião de ver, que o soldado preto além de ser muito aceado, tem muita propensão para a vida militar, porque só assim se pôde ver bem vestido e calçado, o que lhe dá um subido grau de superioridade sobre aquelles que só trajam panos e andam descal- ços. Depois de fardado e calçado, elle mesmo se consi- dera branco, e tracta de — negros — os da sua espécie, que não andam calçados. Esta vaidade deveria até ser aproveitada, para d'ella tirar bom partido, o que era facillimo dando á tropa preta um uniforme commodo e de cores vistosas, pois é bem sabido que elles se deixara fascinar pelos enfeites abrilhantados. Isto não é ideia nova: — ha muito que os inglezes na India, e os francezes em Argel, a pozeram em prática e assim poupam os seus soldados e utilisam braços que despresados lhes poderiam ser funestos. 
Ha em Angola muita rapaziada parda que sabe ler e escrever: são esses os que deveriam ser escolhidos para officiaes inferiores, entregando o commando dos corpos e das companhias a officiaes brancos do exercito do Ultramar, filhos do paiz, ou europeus aclimatados já pelos muitos annos de residência, ou a officiaes do exercito de Portugal, que por sua livre vontade queiram ir para Africa. É muito conveniente que os officiaes superiores sejam brancos, não só por serem muito mais intelligentes e terem mais conhecimentos práticos do que os mulatos. mas também por ser um facto de todos bem sabido, que os pretos preferem ser commandados pelos brancos, que lhes inspiram maior confiança. A superioridade do soldado preto sobre o branco torna-se bem notável todas as vezes que ha qualquer marcha para o interior: os brancos são os primeiros que cançam, os que mais sofrem com a falta d'agua, e quando chegam a algum ponto em que o mato os obriga a parar, são sempre os empacaceiros que passam para a frente a abrir-lhes caminho. Não nos devemos admirar que a nossa gente de a direita á tropa preta n'essas diftcultosas marchas, porque raro é o branco, por mais robusto que seja, que possa aturar por muito tempo o terrível calor do verão, e resistir ás febres, fadigas, e privações, a que muitos d'elles succumbem desgraçadamente por falta de remédios e de facultativos. Pára terminar sobre este assumpto, farei ainda uma consideração. Causa espanto que se tivesse abolido no exercito o castigo da chibata, único elemento de disciplina que restava, para o substituir por um castigo mil vezes mais bárbaro e immoral! Actualmente todos os soldados do nosso exercito que cornmettem três faltas de certa gravidade, que d'an- tes expiavam com umas tantas chibatadas, são condem- nados a servir nas companhias disciplinarias do Ultramar, onde morrem victimas da febre, ou onde vivem promiscuamente com facinorosos e malvados de toda a espécie. Aquelles que teem a fortuna de escapar, vol- tam de lá mais desmoralisados, se não mais viciosos do saque foram. Será isto de algum modo proveitoso para o exercito e para o paiz? As impressões de uma viagem, por mais sucinto que se queira ser na sua narração, obrigam sempre a certas reflexões que a importância do assumpto suggere : é o que nos tem acontecido, e é natural que ainda torne acontecer. Por em quanto voltemos á descripção de Loanda, Foi, como já dissemos, para a igreja de Nossa Senhora dos Remédios — que os modernos Bispos transportaram a sua cadeira, e é n'este templo que se celebram immensos ofíicios de corpo presente. E' também alli, que os novos Governadores se dirigem depois do desembarque para assistirem ao Te-Deum, acompanhados pelo Governador que vão substituir. De lá seguem para o Palácio, onde se reúnem na sala do docel as authoridades civis, militares, e ecclesiasticas, e grande numero de empregados públicos, e commerciantes para assistirem ao auto da posse. É costume trocarem os Governadores entre si phrases lisonjeiras e cordiaes, aproveitando-se o recem-chegado da occasião, para dirigir ao auditório uma espécie de programma do seu futuro governo. O desembarque de um novo Governador é cousa bastante curiosa a presenciar, por uma particularidade que a torna assaz caricata, e que já por varias vezes tem feito encordoar os recem-chegados. N'essa occasião o povo todo de Loanda reune-se na praia, junto ao cães do desembarque, para vêr e festejar o seu novo Governador, a quem os pretos chamam  Maniputo mas como o numero d'estes, é muito superior ao dos brancos, fácil é de comprehender que a sua alegria e ovações devem predominar e tornar-se muito salientes. Com efeito assim acontece, e creio que não é fácil presenciar um acto de ridículo tão sublime como o do regosijo dos pretos de Loanda. Ao troar do canhão das fortalezas e dos navios surtos na bahia, junte-se o estalido das girandolas de foguetes, os repiques de sinos, a musica regimental, as estrepitosas acclamações, os pulos desordenados e a inferneira produzida por alguns milhares d'apitos e de gaitas capadeiras, e mal se poderá formar ideia da impressão causada no espirito de um europeu, que pela primeira vez presenceia tão delirante espectáculo. Se o desembarque tem lugar no verão de meado de Novembro a Maio — enxames de cigarras juntam o seu canto ruidoso ao immenso alarido da multidão. Estas scenas de efusão devem ser presenciadas para poderem ser comprehendidas. Supponho, mas não ò affirmo, que aos Bispos fazem iguaes recepções. Não é só na nova Sé, que se exerce o culto divino: também se diz missa todos os dias santificados n'uma igreja da cidade alta, cujo orago é S.João Baptista, e á qual assiste de ordinário o Governador com seu estado maior, e os destacamentos da guarnição com a musica do 1. de linha, uma das melhores cousas que encontrei em Loanda, e á qual na realidade me não esperava. Na cidade baixa ha ainda a igreja do Corpo Santo, e (') Também dão este nome ao Rei de Portugal mais duas capellas. Não é de certo por falta de templos que em Loanda se não ouve missa; talvez seja por falta de padres. Já disse que a igreja dos Jesuitas está em completo estado de ruioa: apenas existem as quatro paredes, ás quaes encostaram uns pequenos alojamentos ou barracas de feira, a que chamam — officinas das obras publicas — onde vi executar algumas obras de ferreiro, espitigardeiro, funileiro, correeiro, tanoeiro, torneiro e carpinteiro, parte d'ellas feitas por operários degredados, e outras, por operários a jornal. Parece que este estabelecimento, á testa do qual se acha um capitão, deveria ser de grande proveito n'um paiz onde tudo vai de fora por subido preço; infelizmente não acontece assim, visto que a mão d'obra e o valor dos materiaes empregados, importam em muito mais do que a receita das officinas. No mesmo edifício, mas na parte do antigo convento, conhecido ainda hoje por — Collegio — é que se recolhem os pretos provenientes das apprehensões feitas pelos cruzeiros portuguezes, chamados por isso libertos, e não porque elles gozem da sua liberdade, porque não saem senão para fazer algum serviço no Palácio do Governo, ou nas repartições publicas, e sempre acompanhados por soldados. Alguns vi também n'uma immunda enxovia que existe dentro do próprio estabelecimento. É tão pouca a confiança que o Director tem n'esta gente, que quando os emprega no transporte de objectos de algum valor, costuma pôr-lhes umas gargalheiras de ferro que os prendem uns aos outros, e assim percorrem as ruas da capital comboios de pretos que muito se assemelham ás recuas dos nossos almocreves. Existe ainda a capella mór separada do resto do edifício por uma divisão de madeira, e serve de deposito da agua para os libertos e operários. Alli um d'estes, escondido atraz do altar mór, exerceu por algum tempo a honesta profissão de moedeiro falso, que já em Portugal tinha exercido com algum proveito, até que os nossos tribunaes pouco admiradores das bellas artes, o expatriaram para longe da Izabelinha, terra da sua naturalidade. O altar mór, é de mosaico, ido de Itália, e muito semelhante a um do Convento da Batalha. Apesar de muito sujo e mal conservado, não me pareceu deteriorado: apenas lhe faltam quatro bellas columnas torcidas, de mármore côr de rosa, que adornavam o retábulo, e que o Governador Féo mandou tirar, para figurarem na construcção de um monumento para commemorar a acclamação d'El-Rei D. João VI, e o mau gosto de que era dotado.

 O embellezamento da actual praça de D. Pedro V, perto do Palácio do Governo, onde se achava tão apre- ciável monumento, exigiu a sua remoção para sitio mais adequado; por isso o apearam, e depositaram em monte a um lado da praça os materiaes de que se compunha. Ha annos que alli existem e naturalmente continuarão a existir, com o que nada se perde ; seria no entanto conveniente que as columnas voltassem para o seu primitivo logar d'onde nunca deveriam ter sabido, removendo-se aquelle altar mór, a melhor obra d'arte que existe em Angola, para alguma igreja onde se lhe desse o apreço que merece. Também lá encontrei, meio enterrado no chão e coberto com pontas e aparas de madeira, um lindo obuz de bronze, notável pela sua grande antiguidade e bello desenho: — é uma peça muito digna de figurar n'um museu d'artilheria. 
A Sé velha, que inculca ter sido um sumptuoso edifício, apenas tem hoje quatro paredes desmanteladas: depois de ter servido de curral, é agora o deposito de lixos e immundicias. Estas ruinas pertencem também á cidade alta, na qual se acham os melhores edifícios pulcos, e para onde os primeiros Governadores tentaram chamar a povoação, porém os interesses commerciaes tiveram maior poder, e assentaram a cidade no sitio menos próprio para esse fím. O convento deS. José, de que fallei quando lembrei a instituição de um seminário em Loanda, era também um bom monumento, e n'elle esteve por muito tempo o hospital militar, mas como se acha um tanto afastado da cidade, o Physico mór e mais facultativos, incommodados com este pequeno passeio que tinham de fazer uma vez por dia, entenderam que o melhor era desacreditar o local e edifício ; e transportaram os doentes para o Hospital da Misericórdia, onde de certo o Physico mór está mais á sua vontade do que os enfermos. Não cheguei a visitar esse estabelecimento, porque me não agradam taes visitas; mas pelas informações que tive, é uma das repartições que mais notável se tem tornado tanto pela falta de aceio, como dos objectos mais necessários para commodidade e bem-eslar dos doentes. No tempo das aguas, chove, por toda a parte, e mais de uma pessoa me asseverou que os facultativos se viam obrigados, por vezes, a fazerem a visita aos doentes, de guarda cbuva aberto. Pôde ser que n'isto haja exageração; porém o que posso aliançar, é que tendo sido atacado da febre, um dos meus companheiros de viagem, e sendo obrigado a recolher-se ao hospital, por o nao quererem conservar na casa onde se achava hospe- dado, depois de ter dado entrada no hospital, mandou pedir ao Governador, pelo amor de Deus, que lhe man- dasse uma enxerga e lençoes, porque a cama que lhe ti- nham dado se achava em tal estado, que elle preferia morrer debaixo de uma arvore, do que deitar-se n'ella! Nada posso dizer com fundamento do modo porque alli são traclados os enfermos; sei que o sulfato de qui- nino é a base de todos os tractamentos, e d'elle se faz um consumo espantoso. As raras visitas do Physico mór ao hospital, obrigam-me a acreditar que aquelle estabe- lecimento não é mais do que um recolhimento para as pessoas atacadas de moléstias, e que ninguém quer con- sentir em casa; um deposito de moribundos: — o ponto de tranzição da vida para a morte infallivel. Feliz aquelle que se pôde tractar em sua casa, e a quem Deus deu mulher e filhas estremosas que lhe pro- digalizam os seus cuidados! O homem solteiro, que vive só com escravos, é sempre victima do abandono em que o deixam os seus servos, e algumas vezes os amigos com quem vivia. Junto ao hospital está a igreja da Misericórdia, e exteriormente não me pareceu mal conservada. Existem ainda na cidade alta as ruinas do convento do Carmo e do hospicio de Santo António, em parte habitado por alguns pobres, onde provavelmente se abrigam de graça : é um triste remédio de que podem um dia ser victimas. Junto ao collegio ou repartição das obras publicas, ve-se o Paço do Bispo, que era o corpo principal do antigo convento dos Jesuítas, edifício bastante deteriorado, mas susceptível de melhoramento. N'uma parte d'elle está estabelecida á Secretaria do Governo, que é uma das repartições que me pareceu mais bem montada. No andar térreo acha-se a imprensa da Província, onde se imprime o Boletim de Angola, pequeno periódico semanal que publica os actos oficiaes, e alguns annuncios. No mesmo pavimento servem uns quartos d'arrecadação ás companhias expedicionárias que d'aqui foram . Pegado á Secretaria, e com communicação interior, temos o Palácio do Governo, que é a obra mais solida que vi em Loanda. As madeiras empregadas na sua construcção foram todas do Brazil : só assim é que po- deram dar ás salas, dimensões que não seria possível obter com as madeiras da Província, as quaes, por falta de meios de transporte, são apparelhadas em dimensões tão acanhadas, que se tornam impossíveis construcções de grandes vãos. 
No interior do paiz existem excellentes madeiras tão boas como as da America, taes como a malanga, jacarandá, páco, pau ferro y pau coleo?, espinheiro, tacula, imhondeiro cujo tronco serve de cortiço ás abelhas tão abundantes em Africa, que apesar do bárbaro e absurdo processo empregado pelos naturaes do paiz para a colheita da cera, sua producção não parece ter diminuido muito. Os pretos lançam o fogo ás tocas das abelhas, queimam enxames inteiros, perdem o mel, e deterioram a cera, que poderia ser um dos mais bellos e mais rendosos productosdas nossas colónias. Ha tambem graIha?, cujos ramos, apenas tocam no chão, pegam raiz, e assim vão com o decorrer dos annos reproduzindo em volta do tronco successivas galerias concêntricas de uma belleza admirável. Os pretos por não fazerem uso da serra, e se verem obrigados a apparelhar tudo a machado e machadinha, escolhem sempre as menos duras e de menor bitola. Não ha nada mais curioso do que vêl-os chegar ao mercado com taboas de quatro centimetros d'espessura, e de oito a dez metros de comprimento, desbastadas a machado e empenadas em todos os sentidos. Não é menos para admirar o modo extravagante que os indígenas empregam para as confeccionar, pois que para obter uma laboa, desperdiçam, reduzindo a cavacos, uma arvore que lhes poderia dar seis ou sete boas taboas, se empre- gassem a serra braçal. Dir-se-ia que praticaram no nosso arsenal de marinha! O Palácio do Governo tem uma bella escadaria de dous lanços, dando para uma sala d'espera. Segue-se um salão de reuniões, taes como a da commissão mixta (na qual a nossa fiel alliada deveria ter um mais digno representante, a que preside o Governador geral, mobilado ad hoc; e onde estão os retratos de D. João VT, D. Maria II, e de dous ou três Governadores, sendo um d'elles o do Visconde do Pinheiro, de tamanho natural, fazendo pendant ao da Rainha ; e o do celebre general, restaurador d'Angola, Salvador Corrêa de Sá Benevides, que em 1648 expulsou os Hollandezes d'aquelle território, que o Governador Pedro Cezar de Menezes não soubera conservar. A este salão segue-se o do docel, ou de recepções officiaes, que é o melhor de lodos, mas está adornado com demasiada simplicidade. Parallelamente a estas três salas, que occupam toda a fachada do corpo princi- pal do edifício, ha um corredor, á entrada do qual se acha o gabinete dos ajudantes d'ordens, e que dá com- municação para três saletas particulares, sala de jantar, e habitação do Governador e de seus familiares. A sala de jantar fica virada para o lado do mar, e d'ella se descobre grande parte da ilha de Loanda: é uma espécie de varanda envidraçada de quinze metros proximamente de comprido por cinco de largo. Todo o lado do Palácio exposto ao poente está mais damnificado, que o resto; sobretudo a sala de jantar, que já tem parle do travejamento rendido. O telhado acha-se em tão mau estado, que das vinte oito repartições de que se compõe a distribuição interna, apenas na sala do docel é que não chove. A quarta parte do espaço occupadopelo andar terreo está inutilisada : é uma enorme cozinha com dous grandes fornos, e numerosas fornalhas, em tudo própria de um convento de Bernardos. Os modernos Governadores teem feito uso de uma cozinha que ha perto da sala de jantar, não só por maior commodidade, mas também para mostrar que se não come hoje tanto como antiga- mente. Nas trazeiras do Palácio ha uns quintaes com algumas arvores, perdidas entre uma immensidade de hervas bravas e de plantas silvestres, entre as quaes abunda o carrapateiro, do qual se poderia tirar maior proveito, extrahindo o óleo de mamona, que tão boa acceitação teria nos mercados da Europa, era vez de venderem o carrapato a granel como agora fazem. Esta planta nasce espontaneamente em todo o território da Provincia. O anil, esse rico producto tão procurado pelos diíferentes ramos da industria, cresce abundante- mente, mesmo nos subúrbios de Loanda. Os Jesuitas occuparam-se muito da extracção d'este producto, mas depois ninguém mais cuidou n'isso. Junto ao Palácio do Governo está o quartel do 1.° de linha, que é composto de degredados válidos, e o dos destacamentos de caçadores. Este edifício, como todos os mais que pertencem ao Estado, ameaça desabar; parte d'elle já está abandonado. Em frente depara-se com a casa da Junta da Fazenda obra solida, mas pesada e pouco elegante: tem cento e dez annos de existência. Foi mal escolhido o local para a sua edificação, porque assim privaram o Palácio do Governo da magnifica vista que tinha para a bahia e cidade baixa. Ao lado da casa da Junta da Fazenda existe a cadêa, pequena construcção de um andar, que primitivamente serviu de casa da Camará, e me pareceu mais aceada exterior, do que interiormente. Próximo fica o quartel da companhia dos artífices. Esta companhia é commandada por um alferes já maduro, e que não pertence ao corpo d'engenharia militar, apesar de usar d'esse uniforme. Estes artifices são na maior parte degredados : não ha entre elles um bom operário, e pareceram-me quasi todos não só veteranos, mas inválidos. Se artifice quer dizer incapaz en- tão a companhia de Loanda está perfeitamente organisada. 
Concluirei esta ligeira descripção da cidade alta, mencionando a fortaleza de S. Miguel, onde está o telegrapho, collocada n'uma eminência em frente da hahia, dominando toda a cidade baixa e parte da alta, e d'onde se avistam as embarcações apenas despontam em qualquer lado do horisonte : é n'ella que os officiaes cumprem o tempo de detenção, a que por vezes são condemnados. Uma das cortinas que ficam viradas para a cidade baixa, destacando-se um dia do resto da construcção, deixou-se escorregar pela encosta do monte, até que encontrou um obstáculo que a deteve no sitio onde agora existe. Isto não nos deve causar admiração, porque em Portugal temos muitas fortalezas em peor estado. Não tive occasião de visitar a fortaleza, mas ouvi dizer que não está mal conservada, faltando-lhie apenas artilheria soffrivel, porque tanto a que a guarnece, como a da fortaleza do Penedo, é tão ordinária, que mal serve para as salvas; comtudo manda a justiça que se diga, que as peças d'artilheria, tanto em Loanda, como em Benguella e Mossamedes, tem feito o seu dever, e de maravilha se darão tantas salvas em parte alguma como por lá. A entrada e sabida dos cruzeiros estrangeiros, e os embarques e desembarques dos Governadores, são causa de se gastar muita pólvora, que apesar de ser ordinária, fica á Provincia pelo preço da boa. Fallando com alguns sujeitos a este respeito, disseram-me, que um polaco de olho azul, governador de uma fortaleza, e que vive em Angola ha muitos annos, onde tem feito casa, costuma comprar quanta pólvora avariada apparece para substituir com ella a que o Estado lhe fornece, a qual depois é vendida por bom preço, não só aos pretos do interior, mas até a certos logistas da baixa. — São transferencias que pôde executar commodamente por ser o depositário de toda a pólvora que os negociantes recebem para negocio, e que são obri- gados a arrecadar no paiol da fortaleza de que elle é go- vernador. Estas falcatruas e muitas outras que taes, são vul- gares em toda a costa d'Africa : creio poder dizer, sem grande risco de me enganar, que o são em todas as nossas possessões. Ha em Portugal um funccionarlo publico, de quem me não declararam o nome, que gosa de credito, e que não deixou em Loanda a melhor reputação. Parece que este digno homem, quando teve a seu cargo o deposito de mantimentos da nossa estação naval, fazia ao vi- nho, á aguardente, e ao azeite a mesma operação que o  outro faz á pólvora ; isto é, misturando agua e. azeite de mendui n'aquelles géneros. Foi assim que se juntaram alguns contos de reis, e se fez jus a certas distineções, como remuneração de serviços prestados ao paiz!
Desçamos agora á cidade baixa, e vejamos de
 re- lance quaes são os principaes edifícios do Estado. 


CONTINUA ....




In  QUARENTA E CINCO DIAS EM ANGOLA. APONTAMENTOS DE VIAGEM
Porto editora: 1862 — typ. de sebastião josé pereira, 
Ruado Almada, 641

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