sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

José Henriques e Silva: O bom colono

José Henriques e Silva chegou a Nacala em 57 para dirigir as obras do porto. Entre o clube de ténis, as festas de batuques e o chá com as senhoras, usava a Leica para fotografar os seus amigos pescadores macua.
Texto de Ana Soromenho





Ali Uacate já pode morrer. Ele tinha dito que estava muito cansado, que não queria viver mais. Pediram-lhe para esperar um ano. Que esperasse só mais um ano, para ver a exposição de fotografias do senhor engenheiro. Então ele prometeu e esperou um ano inteiro. Ali é um homem antigo, tão antigo como o tempo colonial. Ele ainda não entendeu porque é que o engenheiro foi morrer tão longe de Nacala e não foi enterrado debaixo do cajueiro, que é o lugar onde os macuas cuidam dos seus mortos. O engenheiro Silva partiu em 1983, mas o velho cozinheiro continua a não querer acreditar que ele nunca mais volta à praia de Fernão Veloso.
José Henriques e Silva foi para Nacala com 38 anos. Apaixonou-se por esta terra, onde viveu durante 23 anos, e pela sua gente, com quem estabeleceu uma relação pouco usual para um colono branco. Era um homem culto e inquieto, um curioso que gostava muito de fotografar, que andava sempre com uma Leica pendurada no ombro e que, quase acidentalmente, acabou por construir um considerável espólio fotográfico: mais de cinco mil registos a preto e branco sobre os pescadores macuas, os habitantes deste segmento de costa suaíli do norte de Moçambique.

No ano em que chegou, 1957, Nacala não era mais do que uma pequena vila da província de Nampula com meia dúzia de casas em redor da estação de comboio, o único meio de ligação entre a costa e o interior. Nampula fica a cerca de 300 quilómetros. Contam os velhos que viveram naquele tempo que os leões ainda apareciam às portas da vila. Tudo o resto era mato e uma imensa e deslumbrante baía aberta sobre o Índico.

José Henriques e Silva era engenheiro civil e tinha vindo da metrópole para iniciar as obras do porto. Instala-se em Nacala para dar seguimento ao projecto de desenvolvimento da futura cidade. A construção de um porto naquela costa era uma aposta da política colonial, uma obra imprescindível na ligação ao interior, que passaria a garantir o escoamento da produção do norte do país assente nas grandes culturas do caju e do algodão. É num ambiente de pequeníssima sociedade, provinciana e longínqua - Lourenço Marques, a capital, ficava a mais de dois mil quilómetros de distância para sul -, que José Henriques da Silva vai dirigir as obras do porto. Ele pertence à élite dos engenheiros, frequenta o clube de ténis, os chás das senhoras, participa nas tricas dos pequenos acontecimentos mundanos de uma sociedade bem instalada nas colónias e que a seu modo também reproduz o estilo de vida que os portugueses praticavam em África.

O grande crescimento da cidade, que teve início com as obras do porto e com a instalação da fábrica de cimentos de Champallimaud, faz-se sentir na década de 60. Quando a guerra em Moçambique rebenta mais a norte, na província de Cabo Delgado, constrói-se em Nacala a base aérea que passa a funcionar como retaguarda militar de apoio à guerra colonial. José Henriques da Silva também participa nas obras do novo aeródromo militar. A vinda dos militares e das respectivas famílias dá um novo fôlego à vida da colónia. Na encosta que desce sobre a grande baía de Fernão Veloso começa a edificar-se a nova cidade com os típicos complexos de habitação de traçado modernista, os arruamentos largos e as novas avenidas que rasgam a paisagem africana e dominam sobre as praias de coral.

O «Silva», como lhe chamavam os amigos, era casado com uma portuguesa de quem teve dois filhos. A família divide o tempo entre Nacala e Portugal e ele passa longas temporadas sozinho. Longe da actividade das obras de engenharia e da vida social constrói uma casa na praia, uma palhota em madeira e «makuti», como as casas dos africanos, típicas daquela região. Este lugar, junto ao mar, foi o seu refúgio de fim-de-semana e de longas temporadas isoladas da vida citadina. Era aqui que tinha os seus livros, as revistas que assinava e o mantinham em contacto com a cultura europeia, era onde lia o «Le Monde» e escutava a Radio France. Mas, mais do que lugar de eremita, a casa da praia - cuja placa com a irónica indicação «Regulado Independente Palhota Pai Silva» ainda hoje se mantém - era o lugar de transição entre dois mundos que não se tocam e por onde o engenheiro Silva circula com o olhar curioso de fotógrafo branco, fascinado pelos gestos e pelos rituais daquele povo litoral, tão particular, da África islamizada que são os macuas.

A fotografia acabará também por funcionar como um motivo de aproximação ao universo dos pescadores e da sociedade macua. Fotografando, ele atravessa essa fronteira. Para além de um olhar meramente documental ou etnográfico, o espólio de José Henriques e Silva revela uma intimidade nos registos quotidianos pouco usual na fotografia feita sobre o mundo africano na época colonial. Sempre que pode, de madrugada e ao fim do dia, o fotógrafo está na praia, recolhe imagens, observa, entra quanto pode naquela vida.

Chehane Omar, 45 anos, conta, por exemplo, o encontro que teve com «senhor engenheiro» quando ainda era um rapaz e trabalhava nas obras do porto. Vivia ao pé da praia, a mesma para onde hoje aponta com o dedo, ali foi o lugar da história: «Ele andou uns dias a observar-me e depois chamou-me para me perguntar se eu sabia pescar. Eu fui trabalhar para a casa e pescava para ele. Quando ia fotografar, levava-me sempre. Eu carregava as máquinas e falava com os pescadores para lhes dizer o que é que tinham de fazer.» Chehane mima os gestos de José Henriques e Silva com a câmara à frente dos olhos. Mostra as dunas de areia dura e o modo como o engenheiro tinha andado dias inteiros a observar e fotografar aquelas rochas até descobrir um ribeiro que levava a água doce à praia. Depois lembra-se das festas com os tocadores de batuque que «Pai Silva» organizava, aos sábados, e dos almoços de cabrito para os quais convidava os pescadores a aparecerem depois das sessões de fotografias. Também conta o fascínio do fotógrafo pelas mulheres macuas, as que cobriam a cara e o corpo com o pó branco que lhes deixava a pele mais sedosa. Silva foi apanhado por esse ambiente de sensualidade africana e, rapidamente, criou uma cumplicidade pouco usual para um branco na comunidade dos negros muçulmanos.

Ainda hoje, Ali Uacate, o cozinheiro que o serviu durante todo o tempo em que Silva permaneceu em África, mora na casa que o engenheiro lhe construiu na antiga estrada de Fernão Veloso. Ele está sentado à sombra de um cajueiro centenário, levanta-se e vem ao nosso encontro rodeado de mulheres. Não sabe a idade que tem. Mas lembra-se, como se fosse hoje, do dia em que o engenheiro o convenceu a tirar a carta de condução porque o tempo colonial tinha acabado. Foi ele, inseparável do «senhor engenheiro», quem lhe ensinou os costumes de África, e só foi aprender a guiar porque o patrão se ia embora e ele nunca mais iria querer servir alguém. Durante os anos da guerra civil, na década de 80, todos os dias Ali Uacate percorreu a estrada entre Nacala e Nampula na coluna militar, para fornecer de gasolina a empresa onde trabalhava, e todos os dias viu gente a ser atacada pelos homens da Renamo. Nunca lhe aconteceu nada. E é por isso que acredita que alguém o protegeu no céu. Estava cansado e não queria viver mais. Mas, mesmo assim, esperou. Esperou porque a Joana lhe tinha prometido que as fotografias dos «Pescadores Macua» iriam voltar à praia de Fernão Veloso.

Joana Pereira Leite, hoje economista e fotógrafa, foi para o Norte de Moçambique quando fez seis anos. Toda a sua infância se cruzou com o engenheiro Henriques da Silva com quem estabeleceu uma amizade muito particular. Mais tarde, já adulta, irá herdar todo o espólio fotográfico dos «Pescadores Macua». Lembra-se de Silva aparecer na casa de Nacala, à hora do chá, sempre cheio de histórias e novidades sobre a vida dos colonos: «Tinha um sentido de humor muito particular e toda aquela mundanidade colonial o divertia. Andava sempre de máquina fotográfica, registava tudo, depois brincava com os negativos e construía histórias muito engraçadas sobre aquele universo dos brancos de Nacala.» Eram os tempos em que o Silva a levava no Volkswagen a entrar pelo mato dentro, naquele mundo indefinido a que os brancos não acediam. «Ele enchia o banco de trás com fotografias, ia pela estrada fora, e então entrava por aquelas estradas de terra vermelha impossíveis de penetrar. Entrava a buzinar, os amigos aproximavam-se e ele ia distribuindo fotografias. Levava-me sempre. De manhã ia-me buscar e eu passava o dia na praia dele quando estava a fotografar. Foi um grande privilégio porque eu comecei a aperceber-me desse mundo, que era muito diferente. Nós éramos extremamente urbanos e ele deu-me a conhecer uma outra dimensão africana.»

Só muito mais tarde, já depois da independência de Moçambique e um ano antes de regressar a Portugal, em 1978, é que Henriques e Silva toma consciência do seu trabalho fotográfico junto dos macuas da costa suaíli, os pescadores da baía de Fernão Veloso. Tinha já começado enviar todos os negativos a Joana Pereira Leite que, entretanto, já estava em Lisboa. Juntos elaboram um esboço de um projecto documental sobre os macuas. Num testamento informal faz um apelo emocionado: «Estive 23 anos em Moçambique e verifico que o que fiz não foi realizado completamente. Agora, que não tenho possibilidade de voltar, é que constato o muito que ficou por fazer (…) Nacala sempre foi a minha base. Se alguém tiver a possibilidade de alguma vez lá voltar, que se dirija a Fernão Velozo e procure os nomes que vou citar. Esses sim, darão bons elementos se falarem no meu nome.»

Poucos anos depois de escrever este testemunho, José Henriques e Silva volta a Moçambique. Samora Machel convida-o a ir trabalhar para Nacala como responsável pela construção das novas estradas. Silva regressa em Janeiro de 1982. «Ele volta para preencher as lacunas do trabalho fotográfico sobre os pescadores porque toma consciência do material que tem em mãos e quer terminar esses trabalho», diz Joana Pereira Leite. Durante algum tempo mantém uma correspondência com a amiga na qual descreve, emocionado, o seu encontro com as gentes de Fernão Veloso. Um ano depois de ter regressado a Nacala, José Henriques e Silva volta subitamente para Lisboa. Está gravemente doente e vem morrer a Portugal.

Durante os anos que se seguem à morte do amigo, Joana Pereira Leite fica depositária dos negativos e tenta organizar o material fotográfico que tem em mãos, de modo a poder mostrá-lo em Nacala. Ainda em 1983, organiza uma primeira exposição no Arco, em Lisboa, quando Samora Machel visita Portugal. Em 1992, quando a guerra civil termina, volta a Nacala para saber se os amigos de Silva ainda estão vivos e, nessa altura, entrega uma colecção ao Arquivo Histórico de Moçambique. Em 1998, quando a Câmara Municipal de Lisboa se interessa pelo espólio, em parceria com a Comissão Nacional dos Descobrimentos Portugueses (CNCDP), no âmbito do projecto Culturas do Índico, realiza-se uma exposição composta por 150 fotografias e um livro, cujo trabalho gráfico foi criado pelo fotógrafo Vítor Palla. É a partir dessa altura que começa a desenhar-se a possibilidade de uma exposição «Pescadores Macua» para ser mostrada nas praias onde José Henriques e Silva as fotografara.

Em Setembro deste ano, na antiga praia de Fernão Veloso, que agora se chama Neherengue, os pescadores macuas puderam ver as fotografias tiradas por José Henriques e Silva há mais de vinte anos. Junto ao mar construiu-se um espaço ao ar livre em madeira e «makuti». Este encontro, planeado por Joana Pereira Leite, comissária da exposição, e financiado pela Comissão dos Descobrimentos, foi um momento de festa simples e comovente, onde os amigos do fotógrafo reviveram a passagem de um tempo delicado e povoado de memórias.

Só duas décadas depois da morte do fotógrafo, quando regressa a Nacala para realizar um documentário, é que Joana Pereira Leite toma conhecimento das circunstâncias da morte do amigo: «Em 1982, quando regressa a última vez a Nacala, Silva acredita que vai voltar a viver em Moçambique. Só que já não é possível. Ele apercebe-se disso num dia em que está a acompanhar as obras da barragem, a 30 quilómetros de Nacala, e chama a atenção para o trabalho que está mal feito. Os trabalhadores não aceitam a ordem de um branco. Mandam-no embora, dizendo-lhe que o tempo colonial acabou. O Silva fica extremamente chocado. Tem consciência de que não se pode alterar a história. E, no fundo, era isto que ele seria sempre: um bom colono». É a partir desse momento, que o engenheiro Silva fica profundamente deprimido. Abandona o carro na barragem e volta para Nacala a pé. Anda 30 quilómetros, vai para a sua casa da praia e depois isola-se. Não quer ver ninguém. Ali Uacate, encontra-o sozinho e doente e percebe que o patrão quer morrer naquele sítio, junto do seu cajueiro ao pé dos pescadores.



in: Expresso

Sem comentários: