sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Mobutu Sese Seko quis negociar com Marcello Caetano - Luis Gonzaga Ferreira

Não haverá no Ministério dos Negócios Estrangeiros muitos diplomatas com a experiência e o saber do embaixador Luís Gonzaga Ferreira. Em 35 anos de carreira, 33 foram passados no estrangeiro. A distância do país, a convivência com outras culturas e o contacto com personagens marcantes da História do nosso tempo deram-lhe um conhecimento da vida de que poucos se podem orgulhar.


QUADROS de Viagem de Um Diplomata é o relato em livro da missão do embaixador Gonzaga Ferreira no Zaire de Mobutu, num período particularmente difícil das relações entre Lisboa e Kinshasa, devido à guerra em Angola. Antes deste volume, o embaixador lançara outros dois, em que regista as suas memórias no Senegal de Senghor, no início da guerra na Guiné, e durante a época da queda do muro de Berlim, na Bulgária.

Aposentado desde 1993, Luís Gonzaga Ferreira nasceu nos Açores em 1928. Economista, entrou na carreira diplomática bastante tarde, com 31 anos. Com duas excepções (Tóquio e Bruxelas), foi sempre chefe de missão: Dakar, Havana, Kinshasa, Beirute e Sófia. Dos 35 anos de carreira, 33 foram passados fora. Por duas vezes, uma no princípio da guerra, outra no fim, participou em tentativas de resolução do problema colonial por via pacífica. Ambas sem sucesso. Quanto ao comunismo, assistiu à sua implantação em Cuba e participou no enterro do mesmo na Bulgária. Por ser um diplomata particularmente bem informado, houve um colega que chegou a insinuar que «ou era do PCP ou então pertencia à PIDE». Outro acha que ele foi «uma espécie de James Bond da diplomacia portuguesa».

EXPRESSO - A grande novidade do seu novo livro reside na proposta do Presidente do então Zaire, Mobutu Sese Seko, a Marcello Caetano, para tentar resolver a guerra em Angola. Como foi?

LUÍS GONZAGA FERREIRA - Foi uma proposta para tentar resolver o problema colonial português. A primeira vez que Mobutu a apresentou foi no final do Outono de 1970, mas fê-la mais três vezes, em outras tantas versões, até 72. Mobutu queria, a todo o preço, ter um papel determinante na política africana e, em particular, em Angola, como, aliás, se verificou mesmo depois da independência. EXP. - O que o levava a fazer a proposta? Acreditava num projecto autonomista para Angola, já que ela ocorre pouco depois da posse de Caetano?

L.G.F. - Ele vê que Marcello queria dar um certo movimento às questões ultramarinas. Mobutu acompanhava as questões portuguesas de muito perto, até porque no Zaire havia nessa época muitos congoleses de origem portuguesa, de Angola e de Cabinda. Estava convencido de que ia haver uma nova dinâmica na política ultramarina portuguesa e queria aproveitar o ambiente para meter «a colher». Por um lado, resolvia o problema num país com o qual tinha uma fronteira de dois mil quilómetros; por outro, «cortava as pernas» ao MPLA. A sua proposta era «substituir por dentro» a FNLA, com homens que nós mandássemos de Angola. Mobutu não tinha confiança nenhuma em Holden Roberto. Um dia mandou dizer-me que a FNLA era um «ramassis de truands» (bando de malfeitores), em quem não confiava. EXP. - Queria fazer uma espécie de domesticação da FNLA?

L.G.F. - A domesticação da FNLA e a barreira ao MPLA. O que ele não queria de maneira nenhuma foi o que veio a acontecer - a implantação de um regime comunista num país como Angola. E queria, obviamente, engrandecer a sua própria pessoa, subir à tribuna da poderosa (na altura) Organização da Unidade Africana e dizer que tinha resolvido o problema de Angola. Poderia aparecer como o chefe pan-africanista ideal. EXP. - Mas Caetano não acreditou nele, nem na viabilidade da proposta?

L.G.F. - Era uma fantasia pensar-se que seria possível dominar Holden Roberto e os seus próximos. Em África, naquela altura, eliminar essa gente, como? E substituí-los por outros que iam de Angola? Que credibilidade tinha tal projecto? EXP. - Era essa também a sua visão?

L.G.F. - Era. Toda a gente via que isso era pura manipulação. EXP. - Caetano chega a admitir que se a proposta dissesse respeito ao MPLA, tê-la-ia ponderado…

L.G.F. - Essa é a parte mais extraordinária. Eu não esperava essa posição de Marcello. Ele disse-me concretamente: «Vindo desses senhores, que são caracterizados pela ‘doublez’ (e foi essa mesma a palavra empregue), não. Mas se a proposta viesse do lado do MPLA e de Agostinho Neto, eu era capaz de a examinar com muita atenção.» EXP. - Talvez porque o MPLA fosse, então, o único movimento com real implantação.

L.G.F. - Na altura não podia dizer-se que o MPLA tivesse real implantação no terreno. Tinha a Leste, porque vinha da Zâmbia, mas não era essa a razão. Penso que, para Marcello, se tratava dos valores humanos que integravam o MPLA e da capacidade de alguns dos seus homens. O MPLA tinha implantação em Benguela e alguns quadros em Luanda. EXP. - E mais consistência…

L.G.F. - Era mais sério, culturalmente mais próximo, os seus homens eram mais capacitados e desenvolvidos, mais susceptíveis de se poder conversar com eles. EXP. - Se o MPLA tivesse feito uma proposta do género, Caetano teria aceite a sugestão?

L.G.F. - Isso já é especulação, não sei. EXP. - Escreve que a proposta de Mobutu teria tido a simpatia, senão mesmo o apoio de Spiro Agnew, vice-presidente dos EUA, mas não vai mais além…

L.G.F. - Porque a notícia não teve desenvolvimento. A ideia era a de que Spiro tinha estado em Kinshasa e teria sido encarregado por Mobutu - o que nunca se provou - de adiantar esse projecto a Marcello Caetano, numa passagem por Lisboa. EXP. - Não se pode falar, portanto, de um envolvimento norte-americano na proposta?

L.G.F. - Não creio. EXP. - No livro, conclui que, no fundo, esse projecto era impossível…

L.G.F. - Qualquer projecto, para ganhar terreno em África, tinha que contar, da parte do regime português, com uma abertura suficiente para evoluir e passar à prática. Nós sabíamos que isso não era possível. O que nós conseguimos, e essa foi uma das grandes conquistas da nossa missão em Kinshasa, foi a libertação dos 11 prisioneiros portugueses, civis e militares. Alguns deles já lá estavam há seis ou sete anos, em condições miseráveis. Tinham sido presos no decorrer de operações da FNLA e do ELNA (Exército de Libertação Nacional de Angola). Conseguimos também reconstruir a embaixada e restabelecer relações entre o Zaire e Angola. Mas não conseguimos o que era talvez o mais importante: conter a guerra a partir do Zaire. A missão que me tinha sido confiada era essa, e falhou. Houve o desgraçado incidente da PIDE ir buscar os prisioneiros a Kinshasa. EXP. - Sentiu-se traído por essa operação?

L.G.F. - Sentimo-nos todos, porque o nosso trabalho foi posto em causa. Eu estava em Lisboa na altura, mas Mobutu ameaçou prender-me se eu lá pusesse os pés. Ele próprio se sentiu traído e, a partir daí, tudo correu pior. Haveria sempre a política da «zairinização», a nacionalização das padarias, dos táxis, das pequenas e médias empresas. Mas talvez não tivesse acontecido com a mesma raiva em relação aos portugueses, que ficaram proibidos de viver numa faixa de 300 quilómetros junto da fronteira com Angola. EXP. - O golpe foi urdido exclusivamente pelo director da PIDE em Angola, São José Lopes?

L.G.F. - Sim. EXP. - Não teve luz verde de Lisboa?

L.G.F. - Não. EXP. - Nem sequer do director-geral, Silva Pais?

L.G.F. - Não sei. EXP. - E do Presidente do Conselho?

L.G.F. - Não. Até porque nós estávamos a jogar claro com a Cruz Vermelha Internacional. Nós íamos sacar de Kinshasa aqueles homens, Mobutu apenas tinha pedido que o fizéssemos a pouco e pouco, para não chamar a atenção, com receio que o MPLA pudesse fazer um escândalo. EXP. - O São José Lopes chegou mesmo a admitir a hipótese de fazer uma «incursãozinha» a Kinshasa…

L.G.F. - Ele via-se como uma espécie de Lawrence da Arábia contra os turcos de África, mas sem o Mobutu. EXP. - Era uma espécie de operação «Mar Verde» contra Kinshasa?

L.G.F. - Se não o fez é porque não era assim tão fácil. Mas passou-lhe pela cabeça essa ideia e só desapareceu porque a partir de determinada altura Mobutu precisou que nós voltássemos ao Zaire e o ajudássemos a derrubar Marien Ngouabi, que era o Presidente do Congo-Brazzaville. EXP. - Acha que operações desse género podiam ser feitas à conta exclusiva do director da PIDE em Angola?

L.G.F. - Antes de partir para Kinshasa, estava eu no gabinete do ministro Rui Patrício quando, na hora da despedida, diz-me o embaixador Caldeira Coelho: «Não se esqueça que quem manda em Angola é o São José Lopes.» Era verdade! EXP. - Não era o general Costa Gomes? Ele é que era o comandante-chefe das Forças Armadas.

L.G.F. - Ainda não estava lá. EXP. - Outra revelação é o da existência de um plano, gizado em 1973, de invasão de Cabinda, envolvendo forças internacionais, com Kadhafi (da Líbia), Bourguiba (Tunísia) e Boumedienne (Argélia)…



L.G.F. - Chegou a ser congeminado, mas não passou do papel, graças a Deus.

EXP. - Ou ao 25 de Abril…

L.G.F. - Sim, devido ao 25 de Abril. Nessa altura, Mobutu recordou-se do seu primeiro projecto e faz chegar a Bruxelas, para onde eu tinha sido mandado, Edouard Mokolo, que era um dos seus principais conselheiros. O Edouard Mokolo pede-me para eu interceder junto do novo ministro dos Estrangeiros, Mário Soares, para um encontro. Era, no fundo, a mesma ideia de interferir no processo português em África. Mobutu era um homem que nos detestava, em certo sentido e, ao mesmo tempo, nos adorava. É o mesmo homem que, depois de tudo o que nos fez, propôs ao Governo português, em 1984, que tomasse conta do sector estatal do café. Contava-se que a mãe de Mobutu lhe teria dito, no leito de morte, que não se esquecesse dos portugueses. Ele foi o homem que criou um imenso escândalo em torno da nossa embaixada, em 1965, e, três anos depois, diligenciou para que voltássemos. Quando se dá o 25 de Abril, essa ideia peregrina da invasão de Cabinda cai. Ela seria, aliás, um desastre total, não para nós, mas para ele, que introduziria um factor de dissolução dentro do Zaire que acabaria por o destruir.

EXP. - Em 1973, foi portador de uma carta de Caetano para Mobutu. No livro, todavia, não revela o seu teor.

L.G.F. - A carta relacionava-se com toda a trama que se gerou na altura no Zaire e que implicou Portugal. Ela envolvia o então ministro dos Negócios Estrangeiros, Mário Cardoso, um congolês filho de pai português. Havia outros ministros como ele, como Jean-Baptiste Alves, ministro do Comércio, ou Pinto Rafael, ministro do Trabalho. Nós tínhamos amigos e inimigos, mas havia sempre uma facção radical, antiportuguesa, em Kinshasa. Vim de propósito a Lisboa, porque Mobutu queria uma garantia do Presidente do Conselho de que não estávamos envolvidos no caso Mário Cardoso.

EXP. - Que Mobutu suspeitava de estar à frente de uma tentativa de golpe de Estado.

L.G.F. - Exacto. Só depois de Mobutu ter recebido essa carta é que o ambiente se desanuviou.

EXP. - Tem essa carta?

L.G.F. - Não, ficou uma cópia na embaixada, que foi destruída com as outras coisas todas.

EXP. - Porquê?

L.G.F. - Porque não tínhamos a mínima segurança.

EXP. - Houve documentos importantes que se perderam?

L.G.F. - Sim. Depois da questão do Mário Cardoso e, sobretudo, do caso dos prisioneiros libertados pela PIDE, em Dezembro de 1972, sentimos que tudo podia acontecer, tanto da própria FNLA, que tentou atacar três vezes a embaixada, como do próprio Mobutu.

EXP. - Chegou a admitir o pior?

L.G.F. - Em alguns países africanos, em certos momentos e com certos regimes, tem que se admitir o pior, sempre.

EXP. - Sabia que houve um projecto de independência branca para Angola?

L.G.F. - Ouvi falar. Era acalentado pelo Santos e Castro e pela PIDE. Era uma independência à rodesiana. Penso que isso ficou apenas em projecto de reuniões já um bocadinho etilizadas…

EXP. - A sua experiência africana começara em Dakar, em 1961. Dois anos depois, Salazar autorizou uma negociação com a União dos Naturais da Guiné Portuguesa (UNGP), o movimento autonomista de Benjamim Pinto Bull. Uma delegação, chefiada pelo subsecretário de Estado da Administração Ultramarina, Silva Cunha, foi enviada para Bissau, para negociar com a UNGP. O mesmo Salazar encarregou-se de deitar tudo a perder, no discurso de 12 de Agosto.

L.G.F. - Nunca esqueço que estava no Palácio de Bissau, hoje incendiado, com o Silva Cunha e o governador da Guiné, Vasco Rodrigues (entre outros), ouvindo o discurso de António Oliveira Salazar, sem suspeitarmos o que ele ia dizer e aguardando que, dentro de dias, a delegação da UNGP chegasse a Bissau. Houve ali um momento em que tudo podia ter sido jogado.

EXP. - Foi um momento histórico perdido?

L.G.F. - Sem dúvida. Se, em 1963, tivéssemos conseguido fazer entrar em Bissau os homens da UNGP e de vários outros movimentos associados, com os quais eu reunia regularmente em Dakar, poderíamos ter começado a resolver o problema na Guiné e, depois, abrir caminho para negociações semelhantes com Angola, Moçambique, Cabo Verde…

EXP. - A UNPG foi o único movimento recebido por um Presidente do Conselho.

L.G.F. - Sim. Mas o problema que discutimos era como se iria fazer a autonomia da Guiné. Primeiro: como fazê-la com gente tão pouco preparada? Segundo: como aceitariam os portugueses da Guiné essa solução? Sabíamos que o problema era dificílimo, mas não podíamos ficar tolhidos por isso, ou então nunca mais!

EXP. - Na historiografia oficial da Guiné e Cabo Verde, a UNGP é considerada um grupo mais ou menos fantoche.

L.G.F. - É evidente, mas não foi fantoche. Foi um grupo que reuniu os homens da UNGP, apoiado por Senghor e outros movimentos. Porque não existia só o PAIGC. O mal dele e depois do MPLA é que, a partir de certa altura, consideraram-se os únicos e lídimos representantes daqueles territórios. Havia outros. Mas a UNGP perdeu e, por isso, é fácil acusá-la de fantoche.

EXP. - O que é que se passou com Salazar para alterar radicalmente o seu comportamento em meia dúzia de dias?

L.G.F. - O embaixador José Manuel Fragoso, antes de partirmos para Bissau, disse a Salazar que tudo aquilo era um plano inclinado, com tudo o que isso implicava.

EXP. - Quem foram os homens que o demoveram?

L.G.F. - Os Bissaia Barreto e outros que estavam por trás dele - o grupo duro que depois aprisionou Marcello Caetano.

EXP. - Quem?

L.G.F. - Não estou muito certo.

EXP. - Franco Nogueira?

L.G.F. - Obviamente que não apadrinhava nada disto.

EXP. - Poderia, portanto, ter sido um dos homens que influenciou Salazar?

L.G.F. - É possível. Ele nunca acreditou no projecto UNGP. No segundo encontro de Pinto Bull com Salazar, em que este cedeu, Franco Nogueira não esteve presente. Porquê? É possível que tenha sido ele, mais do que qualquer outro, a demover Salazar.

EXP. - Franco Nogueira não acreditava na viabilidade do projecto ou achava que não era esse o caminho?

L.G.F. - As duas coisas.

EXP. - Foi um dos raros diplomatas portugueses que conheceu pessoalmente um dos líderes dos movimentos de libertação: Amílcar Cabral.

L.G.F. - No poder ou ainda fora dele, era um dos maiores chefes políticos africanos da época, senão o único. Conheci-o ainda aqui em Portugal, enquanto estudante.

EXP. - A última vez que o viu…

L.G.F. - …foi em Cuba. No dia 2 de Janeiro de 1966, no Palácio da Presidência em Havana, estão dois representantes ocidentais a falar entre si: o embaixador da França e este vosso amigo, enquanto se aproxima o Presidente da República, Osvaldo Dorticos, para nos cumprimentar. Estamos a conversar, de repente volto-me e vejo um friso que era composto por Amílcar Cabral, Chico Té, Domingos Ramos e mais uns quantos do PAIGC de que não me lembro. Era na véspera da Conferência Tricontinental e Havana estava cheia de delegações. Baixámos a cabeça, porque eu conhecia muito bem o Amílcar Cabral. Um sorrisozinho, não mais, não fosse alguém ver - seria o conluio entre o PAIGC e Portugal!

EXP. - Mas também se cruzara com ele em Dakar.

L.G.F. - Lembro-me de uma partida que me fez uma vez o Senghor. Íamo-nos despedir do Presidente da República senegalês. Era uma sala VIP muito pequenina: para fazer uma fila indiana dos representantes estrangeiros era uma complicação. Às duas por três, o Senghor vem, cumprimenta-me, faz uma pausa, olha para o lado e diz: «Vous vous êtes saluez déjà?» Eu olho para o lado e era o Amílcar Cabral.

EXP. - Em Julho de 1962, recebera uma carta de Amílcar Cabral, dirigida ao governador da Guiné, propondo conversações. Qual foi o destino dessa carta?

L.G.F. - Foi entregue ao governador Peixoto Correia que, por si, a rejeitou. Foi um «non recevoir». Era uma carta de um marxista-leninista e, na situação em que se vivia em Portugal, era inaceitável. Usava de uns termos bastante duros para com Salazar, que nenhum governante português na época poderia aceitar.

Entrevista de JOSÉ PEDRO CASTANHEIRA
Fotografias de LUIZ CARVALHO

in: Expresso

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