sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Angola 20 Anos Depois (4): ALVOR FOI "PERFEITAMENTE SURREALISTA"

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Uma grande ironia do acordo do Alvor foi Portugal, quando já estava a ver que o próprio processo democrático era complicado, ter tentado impor em Angola uma solução "perfeitamente surrealista", a de um Governo de transição com os três movimentos lá representados, disse ao JN Vasco Vieira de Almeida, que foi durante cinco meses o ministro da Economia desse Executivo.
Jornal de Notícias - O que recorda dos tempos que esteve no Governo de Transição em Angola?
Vasco Vieira de Almeida - Estive em Angola numa época particularmente difícil. Cheguei pouco antes de ter rebentado a chamada Guerra de Luanda, um período extremamente complicado porque tinha de preparar-se a saída dos militares portugueses de Angola e a passagem da Administração portuguesa para as novas autoridades saídas dos acordos de Alvor. Foi também o período em que rebentou a guerra, e todas estruturas, por se saber que a administração portuguesa ia cessar, foram completamente desestabilizadas. O que recordo é, principalmente, o esforço de alguns, entre os quais eu me contava, para tentar dar um mínimo de normalidade ao funcionamento da sociedade angolana, numa situação de conflito que tornava isso praticamente impossível.
JN - Era uma batalha perdida...
VVA - Foi um período de enorme agitação, de situações de enorme violência. Para quem, como eu, que toda a minha vida fora anticolonialista, foi uma enorme pena ver destruir inevitavelmente um país. É isso que me leva a escrever uma carta aos três movimentos de libertação, dizendo qual era a minha opinião sobre o que se estava a passar e o que ia acontecer a Angola. Infelizmente, essa carta revelou-se profética.
JN - Teria havido maneira de mudar isso?
VVA - Não, não tenho qualquer dúvida. Havia dois tipos de problemas fundamentais. O primeiro é que, quando se faz o 25 de Abril, os movimentos de libertação dizem que não aceitam nenhuma forma de negociação, só aceitam conversar desde que seja assente o princípio da independência...
JN - Mas, no terreno, a situação não era assim tão má...
VVA - Sim, mas tínhamos uma situação que levou praticamente à desmobilização da tropa portuguesa, apesar da situação militar estar longe de ser dominada pelos movimentos de libertação. Mas havia esse princípio capital, o da independência, sem o qual não seria sequer possível conversar-se com os movimentos de libertação, e a falta de disposição das tropas portuguesas para se baterem a partir do momento em que sabiam que a independência era inevitável. E havia depois outra coisa óbvia: a enorme agitação, aqui, em Portugal, que tornava impossível estabelecer uma política coerente. Não havia instruções por parte do Governo português, havia apenas algum consenso entre as forças políticas em Portugal - desde as que defendiam a independência imediata às que ainda pensavam que era possível fazer uma espécie de Comunidade Portuguesa. Perante um leque de posições destas, havia uma paralisação total do Governo.
JN - E lá?
VVA - Lá, era a total insegurança de um Governo assente na estrutura que tinha sido definida no Alvor. Havia, no mesmo Governo, três tipos de movimentos de libertação, três primeiros-ministros... Se juntar a tudo isto o clima de Guerra Fria em que a coisa se passava, com os Estados Unidos e a União Soviética interessados numa solução do problema angolano, é evidente que era uma tarefa impossível.
JN - As autoridades de Lisboa terão até dito, apesar dos avisos de Luanda, que as coisas eram o que eram, e não adiantaria tentar mudá-las...?
VVA - Devo dizer que não sou muito favorável a esse tipo de argumento, que as coisas teriam sempre de passar-se como se passaram. É uma espécie de desculpa automática para todos os erros que se fazem. E fizeram-se erros enormes do nosso lado! Mas uma coisa é terem-se feito erros, outra é supor que em Portugal havia condições objectivas para impor uma solução unificada. O Melo Antunes, naquela altura, tentou uma solução de equilíbrio, e falou com os movimentos de libertação todos. Mas o MPLA estava então numa posição extremamente dura, porque tinha uma força militar importante, e sabia que tinha o apoio da União Soviética. Essa tentativa do Melo Antunes gorou-se por causa da atitude dos movimentos de libertação, em especial do MPLA, porque era de longe o movimento mais estruturado, o que estava mais próximo de nós, os dirigentes tinham estudado nas nossas universidades, tinha uma visão dos acontecimentos históricos e uma perspectiva política que não andaria muito longe das posições políticas de Portugal. Aliás, houve vários erros nessa altura: lembro-me, por exemplo, de um discurso de Agostinho Neto - de quem era amigo pessoal e por quem tinha muita admiração - em que praticamente dava a entender que os funcionários administrativos portugueses tinham que vir-se embora. Lembro-me que me meti no carro e fui a casa dele dizer-lhe que me parecia um disparate monumental. É importante também não esquecer que o MPLA não era uma força única, e a linha que tinha mais força na altura era uma linha dura, legitimada pelas pessoas que tinham estado na luta contra Portugal, e não compreenderam que uma certa flexibilidade abria a possibilidade de uma colaboração mais estreita com as forças que, do nosso lado, também representavam alguma moderação.
JN - No Alvor, os movimentos de libertação afirmaram que apenas estavam de acordo quanto à independência, e além disso não havia qualquer tipo de acordo ou cooperação. Mesmo assim...
VVA - Acho que uma grande ironia do acordo do Alvor é nós, quando em Portugal já estávamos a ver que o processo democrático era complicado, irmos tentar impor uma situação perfeitamente surrealista, a de criar um Governo de transição com os três movimentos lá representados, como se isso fosse suficiente para acreditar na sua acção.
JN - No processo angolano houve uma originalidade: creio que em nenhum outro processo de descolonização cidadãos do país colonizador se increveram em partidos do do país colonizado. Havia portugueses inscritos no MPLA, na UNITA...
VVA - Havia. A questão aí foi que Angola teve uma colonização muito especial. Não tinha nada a ver com Moçambique, em Angola a colonização foi feita por gente muito pobre. Aliás, é isso que explica, em parte, a nossa pseudocapacidade de lidar com povos africanos...Muita gente que saía daqui vivia em condições praticamente iguais às que viviam as populações em África. Lembro-me de ter encontrado brancos a viver nos musseques, o que era uma coisa inacreditável, como engraxadores nas ruas. Quer dizer, gente do país colonizador, que exerce o poder, ser engraxador em Luanda da mesma maneira que era engraxador no Rossio, é uma coisa inacreditável. O que se verifica, de repente, quando aparecem os três movimentos, e esses movimentos são legitimados pelo acordo de Alvor, é que as pessoas tentaram obter protecção a qualquer preço. O que se passou aqui também - a seguir ao 25 de Abril, eram raras as pessoas que não se inscreveram num partido, porque achavam que isso lhes dava alguma forma de protecção. E as clivagens foram feitas um bocado de acordo com o que era a posição social das pessoas - as que tinham interesses económicos achavam que o MPLA era marxista e portanto procuravam aproximar-se da UNITA, e muita gente que achava que era preciso uma mudança, que se reconhecia nas ideias difusas da época do MPLA. Outra gente aproximou-se da UNITA. Simplesmente, não tinha qualquer espécie de voz, porque se filiaram nos partidos mas não queriam ver-se envolvidos naquele vendaval. E havia muita gente, mesmo muita gente, com menos preparação, menos acesso a informação, que ficava varada porque descobria que aquilo, afinal, não era Portugal. Fizeram-nos descobrir que não eram angolanos, e o próprio MPLA, que a princípio tinha uma grande abertura, começou a fechar-se por força das pressões daqueles que tinham estado na guerrilha e que queriam ter acesso às posições que eram ocupadas por portugueses.
JN - A questão da cidadania dos angolanos por nacionalidade ou por opção - não ficou resolvida no Alvor, ficou para depois...
VVA - No fundo, o que veio ao de cima é que tinha havido um processo de colonização menos elitista, mas há uma coisa que é preciso não esquecer: é que havia uma sobreposição clara - havia dois povos, duas culturas, tipos de interesses diferentes, um domínio completo pelos portugueses da população angolana. Embora houvesse - e isto é um fenómeno diferente em Angola -, uma burguesia negra, escritores, poetas... Essa burguesia negra, que inicialmente tinha estado de alguma forma culturalmente próxima de nós, até em termos políticos - alguns tinham-se batido aqui o salazarismo - acaba por ser submergida, quer por aqueles que conduziram a guerra, quer por camadas novas que vão aparecendo e que cada vez têm menos que ver connosco. Aliás, não tenho ilusões que, à medida que o tempo for passando, o que vai haver é afastamento afectivo e emocional.
JN - Sai do Governo por iniciativa sua ou por pressões? Foi, como se disse, intimado a sair?
VVA - Não, não fui nada intimado. Eu tinha tomado várias posições sobre a maneira como tudo se estava a passar em Angola, e tinha falado, inclusivamente, com os presidentes dos movimentos de libertação. Eu tinha um plano económico para a recuperação de Angola, foi exposto publicamente, tinha o acordo de princípio dos três movimentos - é claro que isso para eles não tinha qualquer espécie de importância, mas era minha obrigação -, e ainda vim aqui a uma reunião duma coisa que se chamava o Conselho dos 20. Essa reunião foi absolutamente inconclusiva, porque não era possível aqui obter um consenso mínimo entre as forças políticas. Voltei para Angola e escrevi uma carta aos três movimentos de libertação. Lembro-me que nessa altura tive uma conversa com o Agostinho Neto, e ele disse-me: "És muito duro também connosco", e eu respondi-lhe: "Não sou mais duro convosco do que com os outros, a vocês o que eu exigia era mais, e nessa medida vocês têm mais responsabilidades". Como não obtive resposta à carta, nem daqui, nem de lá, vim a Lisboa e disse ao Presidente da República que não continuava. Devo dizer que houve um momento em que a mim me parecia que a posição de Portugal devia ter sido a de claramente apoiar um movimento, e esse movimento só poderia ter sido o MPLA, quanto a mim. Ao fazê-lo, talvez tornasse possível um entendimento, talvez tornasse desnecessário o recurso do MPLA aos cubanos, que foram um elemento de perturbação, e teria permitido a Portugal ter moderado de alguma maneira muitas das coisas. Porque, como disse, havia várias alas dentro do MPLA. O Agostinho Neto foi uma espécie de bissectriz entre todas as tendências. Havia nessa altura um grupo de pessoas lúcidas, como as que integravam a Revolta Activa, que eram vistas na altura pelo MPLA como um grupo terrível. A Revolta Activa era constituída por homens muito inteligentes, com uma capacidade de perspectiva interessante. Mas aquele grupo de pessoas válidas a certa altura foi marginalizado pela ala mais radical e mais ignorante do MPLA.
JN - Quanto à ponte aérea. Pensa que as coisas podiam ter sido mais bem organizadas?
VVA - Inicialmente, as pessoas aqui não se aperceberam da gravidade da situação em Angola. Lá, havia uma comissão militar que estava consciente disso, e, no momento em que se estabelece o pânico, o então tenente-coronel Gonçalves Ribeiro, que era o homem que dirigia o que restava da Administração portuguesa, fez o que era possível, e penso que, apesar de tudo, a ponte aérea e a vinda das pessoas é um feito fora do vulgar.

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