sábado, 7 de janeiro de 2012

Mulheres de Benguela se tornaram intermediárias entre portugueses e a elite africana



  • Mariana P. Candido
    2/2/2011Há uma pequena cidade portuária na costa da África Ocidental com uma rica história, muito ligada ao Brasil. Benguela, fundada em 1617 entre os rios Katumbela e Kaporolo, ganhou importância na economia mundial devido ao comércio de escravos. No modesto porto local, comerciantes brasileiros, portugueses e africanos de outras regiões se instalaram e foram responsáveis pelo envio de quase meio milhão de escravos para as Américas durante o período do tráfico transatlântico de cativos. Os laços dessas comunidades uniam Benguela, Rio de Janeiro, Luanda e Lisboa, e nessa fusão de culturas, as mulheres locais tiveram um papel fundamental.
    O número reduzido de europeias e brasileiras em Benguela facilitava o contato entre os estrangeiros e as nativas. O concubinato era prática comum, o que desagradava à Coroa portuguesa. Os administradores condenavam o comportamento dos europeus, alegando que a moral sexual era “deplorável”. O marquês de Pombal, secretário de Estado português entre 1750 e 1777, chegou a criticar a ação dos portugueses que não resistiam aos meses de solidão. D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho (1728-1780), governador de Angola, afirmava que os estrangeiros “esqueciam estar numa capital cristã”. Embora alguns conseguissem manter relações duradouras com mulheres cativas ou livres, poucos se casavam na Igreja Católica. Este foi o caso do comerciante baiano Manoel Pereira Gonçalves, que se uniu à filha da terra Marcelina Francisca dos Santos no dia 19 de abril de 1809, na Igreja Nossa Senhora do Pópulo, em Benguela.
    O desenvolvimento do porto contribuiu para essa união intercultural. Sua localização, na costa central de Angola, facilitou a movimentação na região, que se transformou em parada obrigatória para comerciantes que levavam escravos, cera e marfim e se dirigiam a Luanda, mais ao norte. A partir do século XVII, quando os portugueses começaram a traficar na região, Benguela se tornou um refúgio para tripulações sedentas e famintas, que vinham reparar seus navios avariados. Mas a presença portuguesa se limitava à costa. Estados fortes e centralizados no interior dificultavam a penetração de comerciantes estrangeiros, ao mesmo tempo em que o clima tropical facilitava a transmissão de doenças, como a febre amarela e a malária, restringindo a população estrangeira às cidades portuárias.
    Com a constante chegada de estrangeiros e africanos do interior, Benguela se transformou, no século XVIII, em uma cidade multilinguística, onde habitantes de diferentes origens falavam suas línguas e usavam o umbundu – idioma da maioria da população – e o português para se comunicar. Todos eles buscavam oportunidades econômicas, e isso acelerou as transformações culturais na região.
    O fato era que a população masculina e cosmopolita dos centros urbanos aumentou a participação no comércio escravista relacionando-se com mulheres locais, mesmo que não estabelecesse casamentos formais. A maioria mantinha relações estáveis, o que criou uma geração de mulatos. Antônio José de Barros, por exemplo, sargento português que servia no exército de Benguela em 1797, apesar de solteiro, reconheceu a paternidade de duas meninas em seu testamento – nascidas de um relacionamento que mantivera com sua escrava Vitória –, registrado por um padre local no final do século XVIII. Barros, no seu leito de morte, libertou a mãe de suas filhas, como acontecia no Brasil escravista.
    Quando as mulheres se aliavam aos estrangeiros em Benguela, acabavam fazendo o papel de intermediárias culturais entre os comerciantes e as elites africanas do interior, exercendo funções econômicas diferenciadas. Esposas e concubinas tornaram-se fundamentais no sucesso comercial de seus companheiros, trabalhando como agentes, tradutoras e negociantes. Elas atuavam como quitandeiras, vendendo alimentos nas ruas, e também como donas das grandes casas comerciais, já que eram sócias de seus companheiros, organizando o tráfico de escravos. Além disso, davam origem a uma aristocracia afro-portuguesa: fluente no português e no umbundu, culturalmente sincrética, frequentando a Igreja de Nossa Senhora do Pópulo e vestindo-se à europeia, e ocupando a administração pública. Sua posição como intermediários culturais lhes abria portas comerciais, mas ameaçava sua segurança.
    Dona Aguida Gonçalves era uma dessas mulheres. Ela vivia em Benguela em 1797, foi identificada como mulata, viúva e proprietária de um sobrado e de um bar. Em sua residência moravam doze escravos, incluindo o alfaiate Manoel. Além dos escravos, em sua maioria mulheres, também viviam em sua casa parentes e oito aprendizes de costureiras. Sua habilidade em treinar costureiras e adquirir mão de obra prendada, como o alfaiate Manoel, garantia vantagens adicionais numa cidade de apenas três mil habitantes. Ao explorar a força de trabalho de seus dependentes, Dona Aguida provavelmente dominava o comércio de roupas local.
    Os que residiam nos núcleos urbanos controlados pelos portugueses tiravam proveito do comércio de escravos, lucrando com as oportunidades de negócio. Por outro lado, corriam riscos simplesmente por serem negros ou mulatos. Isto acontecia porque o domínio da língua portuguesa, o pagamento de impostos e a conversão ao catolicismo não eram atributos suficientes para protegê-los da escravidão quando se deslocavam para o interior, além da área sob controle português. Para garantir a liberdade, era fundamental ter bom trânsito entre os oficiais da Coroa portuguesa e as autoridades eclesiásticas.
    O caso de Maria José de Barros retrata bem o panorama. Certa vez, ela deixou Caconda, uma fortaleza portuguesa localizada no interior, e mudou-se para Benguela, onde se casou com José Joaquim Domingues, capitão das forças regulares. Lá, ela não só manteve os laços com sua comunidade, como também assumiu o papel de protetora de conhecidos que vinham do interior. Na terceira década do século XIX, ofereceu abrigo a Quitéria, uma jovem originária de Caconda. A mãe da moça enviara a filha aos cuidados de Maria José para que pudesse aprender o ofício de costureira. Em 1837, depois de uma briga conjugal, o capitão Domingues agrediu a esposa e, ao sair de casa, levou Quitéria à revelia. Ele se dirigiu rapidamente ao porto e vendeu a jovem para um comerciante carioca que se encontrava no local.
    Logo após o negócio, o feliz comprador marcou sua nova escrava a ferro e a embarcou.  Recuperada da agressão física, Maria José chegou ao porto, depois de perguntar pelo destino de sua protegida. O negociante carioca não se comoveu com a história e avisou que partiria em seguida. Assustada com a possibilidade de não conseguir apoio oficial em tempo hábil, Maria José ofereceu um molecote, um jovem escravo, em troca da liberdade de Quitéria. O comerciante aceitou a proposta e livrou a jovem das algemas. Este caso confirma a instabilidade e a violência às quais os negros livres estavam sujeitos. O mundo português abria portas e oferecia diversas oportunidades para esses indivíduos, mas quando eles se colocavam como intermediários, acabavam enfrentando uma série de desvantagens que os tornava presas fáceis. O curioso é que, mesmo em situações adversas, alguns foram capazes de usar o sistema legal português para seu próprio beneficio.
    Maria José foi apenas uma entre muitos africanos que conseguiram obter a liberdade de alguém que lhe era próximo. Casos como esses são exceções. Os mais de quinhentos mil africanos embarcados em Benguela não tiveram a mesma sorte: acabaram parando na outra margem do Atlântico.

    Mariana P. Candidoé professora da Princeton University (EUA) e autora de Fronteras de Esclavización: Esclavitud, Comercio e Identidad en Benguela, 1780-1850 (El Colegio de Mexico, 2011).

    Saiba Mais - Bibliografia
    ALEXANDRE, Valentim; DIAS, Jill (eds.). O Império Africano, 1825-1890 (Nova História da Expansão Portuguesa, ed. Joel Serrão e A.H. de Oliveira Marques, vol. X). Lisboa: Editorial Estampa, 1998.
    CURTO, José. “Resistência à escravidão na África: o caso dos escravos fugitivos recapturados em Angola, 1846-1876”, Afro-Ásia, nº 33. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2005.
    FERREIRA, Roquinaldo. “Ilhas Crioulas: O Significado Plural da Mestiçagem Cultural na África Atlântica,” Revista de História, nº 155. São Paulo, 2006.
    PANTOJA, Selma; SARAIVA, José Flávio Sombra (eds.), Angola e Brasil nas Rotas do Atlântico Sul. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

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