sábado, 24 de março de 2012

A face oculta da guerra no Leste de Angola


A criação dos Flechas

"Quando a PIDE foi para o Cuando-Cubango, existia realmente o campo de trabalho do Missombo, para onde iam os indivíduos que tinham tido actividades terroristas em 1961, quando começou a guerra em Angola.
Depois de chegar a Serpa Pinto, fui ver os processos daquela gente toda para a mandar embora e ocupei aquele terreno com os meus funcionários e com os bushmen.
Fizemos ali um campo de treino e, às tantas, comecei a ter problemas de bushmen em excesso. Dávamos-lhes treino militar, prática de tiro, porque conhecimento e táctica de terreno já eles tinham. Havia também problemas de excesso de voluntários porque muitos queriam pertencer. Eram indivíduos escravos, habituados desde pequenos a apanhar pancada, e tornavam-se de repente soldados, com a sua farda e com a sua nova carga de responsabilidade. O que é que acontecia muitas vezes? Eles iam às senzalas dos sobas, levavam armas e traziam galinhas. Quando nós sabíamos disso, íamos lá com eles e castigávamo-los. Porque a nossa guerra não era contra os pretos e a favor dos bushmen nem vice-versa. A nossa guerra era contra aqueles que nos faziam a guerra e que, segundo o nosso conceito, eram terroristas. Outro problema que eu tive com eles foi a ganância de comer. Havia alturas em que as populações fugiam para as cidades, faziam-se aldeamentos, e as populações deixavam o gado. O gado ficava e tornava-se então um pasto dos leões ou um pasto dos terroristas. Nós não estávamos nada interessados em que os terroristas tivessem bons víveres, por isso mandávamos os bushmen buscar essas manadas abandonadas. Mas esses fulanos, franzinos, com um metro e meio, tinham capacidade de comer aquele gado todo. Teve então que se impor uma certa disciplina nos hábitos deles.Constituímos o acampamento do Missombo e tínhamos à entrada uma frase de Mouzinho de Albuquerque: "Essas poucas páginas brilhantes e consoladoras que há na História de Portugal contemporâneo, escrevemo-la nós, os soldados, com as pontas das baionetas e das lanças..." Isto consta de uma carta de Mouzinho a Sua Alteza D. Luís Filipe. Tínhamos também uma frase de um escritor militar chinês, onde se inspirou Mao Tsé-Tung, o Sun Tsu: "Que a vossa rapidez seja a do vento, que sejam impenetráveis como a floresta. Que as vossas operações sejam tão tenebrosas e misteriosas como a noite e, quando atacardes, fazei-o com a rapidez do raio e a violência do trovão." Tínhamos as duas frases, uma era precisamente a antítese da outra. De facto, treinámos alguns indivíduos a combater de noite, com grande sucesso. Tínhamos sobretudo uma grande vantagem: não era preciso apoio logístico. Esses indivíduos, habituados desde crianças a esgravatar, a viver do nada, tinham uma capacidade nata para se alimentarem, para descobrirem água. E tivemos realmente bons resultados com eles. Nunca tive uma deserção nos Flechas. Tive casos do género de eles virem ter comigo e dizerem: "Senhor inspector, estou cansado, estou velho. Não quero fazer mais guerra. Tem aqui a arma, não quero mais." Então tornámo-los agricultores. Tínhamos uma propriedade pequena, que era esse campo de trabalho do Missombo, com 226 mil hectares. Na vida tudo tem um prazo de duração, o guerrilheiro também. Chegavam a uma determinada altura e eles iam fazer agricultura, arranjámos umas coroas para eles e os homens viviam ali com a sua família. Os Flechas começaram com esses bushmen, mas depois já não eram só bushmen. A região dos bushmen é a que se estende para o Calaári e que depois vai para o Botswana. Os Flechas começam a ser formados na região do Cuando-Cubango, depois da zona de Gago Coutinho. Eram muito bons. Os Flechas começaram nessa região, depois espalharam-se à região do Luso e à região de Luanda, à volta do Caxito, onde havia uns Flechas muito especiais, eram quase todos ex-MPLA. Devo dizer que as nossas Forças Armadas venceram a guerra de guerrilha em Angola. Em 1974 a guerra em Angola estava ganha. O MPLA apresentava-se de armas e bagagens.

Acordo em 1968 com Unita

Depois, quase todas as subdelegações da PIDE em zonas afectadas pelo terrorismo passaram a ter os seus próprios Flechas. Na região de Carmona hoje Uíje tiveram excelentes Flechas que batiam essa zona, nomeadamente em operações contra a FNLA. Combatíamos juntamente com eles. As operações conjuntas iam desde o comerciante que andava de caçadeira a indivíduos da Polícia de Segurança Pública. Nunca houve desacatos. É digna de grande louvor a actividade dos guardas da PSP, nas aldeias estratégicas de reordenamento rural, tanto em Angola como em Moçambique. A determinada altura foi necessário fazer um reordenamento rural de todos aqueles quimbos dispersos pelo mato, devido ao terrorismo. Para não serem subjugados pelos terroristas, formavam grandes aldeias. Essas aldeias tinham só pretos, às vezes tinham um ou dois guardas da PSP a viver no meio de dois mil e tal pretos, mas nunca houve memória de lhes terem feito mal. Essas aldeias tinham depois umas paliçadas e quando havia ataques de terroristas, os guardas da PSP, com as milícias locais, com os pretos armados que não eram Flechas, eram milícias batiam-se contra os terroristas. Às vezes tinham dificuldades, às vezes era difícil os pretos controlarem o dinheiro e as munições. É por isso que se diz que explorávamos os pretos, que não lhes pagávamos: eles tinham sete ou oito mulheres, mas também tinham às vezes trinta filhos. Quando nós lhes pagávamos o ordenado ao fim do mês, eles iam para a taberna e gastavam-no todo. Depois apareciam as mulheres e os filhos. Tanto que depois passámos a fazer assim: dávamos-lhes tanto para os cigarros e para os copos, depois íamos à sapataria comprar sapatos para os filhos, comida para a mulher e, se sobrasse alguma coisa, punha-se no banco. Não quer dizer, não tenho conhecimento disso, que alguém não possa ter feito alguma vigarice, mas essa não era a ideia.Fiz várias operações com os Flechas e muitas operações dos Flechas eram feitas com europeus, mas havia algumas operações em que só iam os Flechas, nomeadamente os bushmen, porque eram operações de quinze dias em que se faziam reconhecimentos, nomadizações. É preciso lembrar, quando se fala de excessos das Forças Armadas portuguesas, que o terrorismo era preconizado nos manuais do Mao Tsé-Tung, do "Che Guevara”, do Camilo Torres, alguns dos inspiradores da guerrilha. Os meus Flechas nunca foram capturados pela guerrilha, mas alguns foram mortos: tive vários mortos em combate mas nunca nenhum foi capturado vivo. Dos outros Flechas que havia em Angola não sei. Muitas vezes capturávamos guerrilheiros, mas havia uma dificuldade muito grande, quer fosse flecha quer fosse GE, em trazer o prisioneiro. A tendência era matá-lo. Acontecia várias vezes, quando as nossas tropas chegavam, que o tipo já não tinha orelhas, já não tinha nada. Alguns guardavam as orelhas no frigorífico, mandavam-nas para a Marinha Grande e faziam pisa-papéis. Este tipo de coisas fez-se em todas as guerras. Que essas coisas eram proibidas, eram, os comandos e os quadros não deixavam que isso acontecesse, mas isso acontecia. Mas se formos para aspectos de violência e de desumanidade, basta ver as fotografias dos massacres de 1961, no Norte de Angola, quando um fazendeiro chegava a casa e ela estava queimada, os filhos trucidados e a mulher violada e cortada aos bocados. Os guerrilheiros normalmente tinham predisposição para serem capturados, senão tentavam fugir e, ao tentarem fugir, o mais natural era serem mortos. Devo dizer que não tinha problemas em pôr guerrilheiros capturados a colaborar connosco. Naturalmente que alguns deles levavam uns tabefes, um "calorzinho". Nós não éramos propriamente uma organização de beneficência. No Leste de Angola, quem começou a criar problemas inicialmente foi a UNITA. Na altura a UNITA era apoiada pela Zâmbia, que faz fronteira com o Leste, Luso e Cuando-Cubango. A UNITA começou a criar-nos problemas, mas sobretudo problemas no que respeita à mentalização da população. Uma característica dos guerrilheiros da UNITA era a sua capacidade de doutrinação das populações. Grande parte dos quadros da UNITA eram treinados na China, na Academia Político-Militar de Nanquim, e vinham realmente muitíssimo bem treinados no que diz respeito à guerra psicológica. Eram maoistas cem por cento. Em vários acampamentos da UNITA que atacámos e destruímos apareciam-nos os livrinhos com o pensamento do Mao Tsé-Tung. O célebre Jonas Savimbi era nada mais, nada menos do que um maoista ferrenho nessa altura. Já o MPLA tinha mais organização e fazia operações de guerrilha bem organizadas. Mas nós praticamente neutralizámos o MLPA, que nunca conseguiu penetrar verdadeiramente no Cuando-Cubango, por duas razões. A primeira era que nós éramos eficientes quando digo nós, refiro-me às Forças Armadas em que nós nos incluíamos. A segunda era que havia também uma presença da UNITA que se opunha ao MPLA. Em determinada altura, já com o general Bettencourt Rodrigues, chegámos à conclusão que era muito mais fácil, para evitar a penetração do MPLA, que vinha da parte noroeste inflectindo para a região do Luso, termos um acordo com os guerrilheiros da UNITA. Isto passou-se a partir de 1968".

O volte face do Savimbi
"Eu colaborei nessas operações, quando se deu o volte face do Savimbi e a UNITA passou a trabalhar em ligação com os portugueses. O seu aquartelamento principal estava localizado na serra da Muzumba. Nós dávamos-lhes munições, armas e apoio logístico. Foi um acordo tácito: os industriais madeireiros tinham os camiões, que a UNITA não atacava. Houve uma operação engraçada, que fizemos com um indivíduo que mais tarde foi muito conhecido no Cuando-Cubango, o soba Matias. Numa determinada altura, apareceu-me na subdelegação de Serpa Pinto um preto, com aspecto inteligente, e que me disse: "Olhe, inspector, eu sei onde há, ali a norte do rio Cuvelai, uns acampamentos da UNITA. Os meninos estão fazer muita chatice, muita confusão. O senhor inspector dá-me uma espingarda que eu vai lá com o meu família..." Ele foi lá com a malta dele, com canhangulos, e trouxe uma data de terroristas. Os terroristas foram presos e foram interrogados. Muitos deles eram terroristas porque não podiam ter sido outra coisa. Depois, como deu resultado, disse ao Matias para ir ver se encontrava mais. Ele disse que encontrava muitos mais, mas que precisava de mais espingardas. Dei-lhe oito espingardas. O resultado daquilo foi tal que aquele homem limpou o terrorismo, e a infiltração da UNITA. A norte do Cuando-Cubango, deixou de haver terrorismo da UNITA. O Matias chefiou uma aldeia com mais de cinco mil pessoas. Todos os dias içavam, com honras militares, a bandeira nacional e também o seu pendão, a Cruz de Avis. Tinha cerca de cem homens da etnia Ganguela, especialmente treinados pela PIDE e pela tropa. Eram a guarda pretoriana de Serpa Pinto. Havia um bocado de penetração da SWAPO, que vinha pela Zâmbia, infiltrava-se no Cuando-Cubango e ia para a zona da Namíbia. Às tantas, apanharam um turra, e o fulano vinha com umas peles de leopardo...Era um soldado da UNITA que foi apanhado com a espingarda. E nós, para sabermos qual era a ordem de batalha da UNITA, falávamos com ele e ele explicava, num português muito mau. Uma das coisas com que nos divertíamos era pedir-lhes para fazerem ordem unida, como eles faziam. Faziam ordem unida com uma vassoura... Chamava-se Maurício Canuma. Era um caçador exímio, conhecia a região muito bem, era bom pisteiro. Estava preso, mas era tão desembaraçado que resolvemos arranjar-lhe um emprego. Ficou a trabalhar com um amigo meu que era caçador.Lembro-me que em 1969, na região de Cangamba, a UNITA tinha sido "trabalhada" pela PIDE, no Leste de Angola, para uma viragem política a favor de Portugal. Os resultados foram satisfatórios. As Forças Armadas portuguesas aceitaram a ideia, para fazer face à penetração do MPLA. Parte das conversações iniciais tiveram lugar na região de Cangamba e Gago Coutinho. Em meados de 1969, eu fui encarregado de estabelecer contacto com quadros superiores da UNITA, no rio Luanguinga, perto de Cangamba. Para o efeito requisitei um Alouette III à força aérea Sul-africana através do nosso CCAA, no Cuito Cuanavale. Com o major sul-africano "Blackie" de Swart, seguimos para Cagamba com um piloto sul-africano. Chegados ao local, metemos a bordo o sub-inspector da PIDE, Teixeira Martins e o major da UNITA, Sachilombo. Dirigimo-nos ao rio Luanginga, onde estava aprazado um encontro com oficiais superiores da UNITA e membros do bureau político. Para o fim em vista, eu tinha já mandado avançar duas secções de Flechas de Gago Coutinho, para o local do encontro e que para lá se deslocariam a pé, em missão de paz, embora armados de G3. Alguns acampamentos da UNITA, no leste, já tinham elementos brancos integrados e vivendo com os guerrilheiros em perfeita harmonia. Quando aterrámos no local combinado, com a confirmação do major Sachilombo, depois de efectuarmos um reconhecimento prévio, não fosse o Diabo tecê-las, encontrámos no terreno um preto muito alto, que usava apenas uma tanga e estava rodeado da mulher e algumas crianças. Notámos que o preto "selvagem" tinha as mãos muito limpas e arranjadas, os pés descalços não estavam calejados. Falava um português correcto e queria fazer-se passar por um indígena local. O preto disse-nos que o ponto de encontro não era ali mas sim a uns quilómetros, numa serra de mata densa que apontou com o dedo. Reagimos com descontentamento à alteração. Passados uns momentos chegavam ao local oito dos meus Flechas, de camuflado fornecido pelo nosso Exército e sem armas. Perguntei-lhes, agastado, porque é que vinham desarmados. Disseram que os "camalatas" (corruptela da palavra camarada) da UNITA se sentiriam ofendidos com as armas visto que eles vinham em missão de paz. Assim resolveram depor as armas".

O major Sachilombo
O major Sachilombo, preto retinto, começou a ficar cinzento, e eu fiquei com "pele de galinha". Só o major sul-africano e o piloto não se aperceberam da situação. O Teixeira Martins ainda alvitrou, percorrermos a distância a pé, até ao ponto de encontro, na mata densa. O Sachilombo teve uma expressão de suspeita de que alguma coisa estava a correr mal. Decido que iríamos ao local, mas primeiro, faríamos um reconhecimento por cima com o helicóptero e se tudo estivesse normal, procuraríamos um local para aterrar. Levantámos voo, a prumo. O piloto fez notar que o combustível estava no fim e que o mais seguro seria ir rapidamente a Cangamba, encher o depósito e voltar. Assim o fez. Regressámos ao ponto de reunião. Estava um fim de tarde africano, lindo e quente, quando nos aproximámos do monte onde nos esperavam. Foi então que se deu um facto curioso. Começou a cair do céu uma chuva densa e forte sobre a colina. O piloto declarou que ali não se via um palmo diante do nariz e não podia aterrar. Demos mais umas voltas no ar à espera que a chuva abrandasse. Como estávamos já quase no crepúsculo, o piloto sugeriu voltarmos a Cangamba e regressar, muito cedo, no dia seguinte. Como, num navio ou aeronave, acima do comandante (piloto) só está Deus, acatámos a decisão do piloto, um tenente da força aérea da África do Sul. Nós tínhamos planeado a operação e baptizámo-la de Viragem. De novo em Cangamba, por volta das 23 horas, recebi uma comunicação rádio de um radiotelegrafista da PIDE, o Oliveira, dizendo que os nossos Flechas da missão de paz tinham sido trucidados, bem como alguns elementos da UNITA que estavam de boa fé. Acrescentou que, no acampamento da UNITA onde ele estava, a população e os guerrilheiros estavam desorientados e muitos deles a fugir para a mata. Disse ainda que no local de reunião, onde nós éramos esperados, estavam cerca de sessenta guerrilheiros e que tinham preparado uma emboscada para mim e para o Teixeira Martins. Ordenei-lhe que destruísse o rádio e os códigos e que se internasse na mata que nós, ao alvorecer, lá estaríamos com helicópteros para o apanhar bem como a alguns Flechas que tivessem escapado. Ao raiar do dia saíram de Cangamba quatro helicópteros, todos os que tínhamos. Passámos o local a pente fino. Recuperámos cinco Flechas vivos e o Oliveira. Encontrámos os restos mortais de nove Flechas, crivados de balas e cortados à catanada de maneira tão sádica que me é impossível descrever. Muitos anos depois, era eu major dos serviços de intelligence militar da África do Sul, voava de Lanseria para Katima Mulilo, na Namíbia, com o coronel Kemp e com Nzau Puna, secretário-geral da UNITA. O Puna quis brilhar e contou ao coronel aquilo que ele achava uma traição dos portugueses. Era então, a nossa operação Viragem, em sentido contrário. Os portugueses eram os maus e os da UNITA, que até tinham baptizado a operação de "Baile", eram as vítimas. E o mais chato disto tudo, é que fui que tive de traduzir. Sempre houve desinteligências tribais na UNITA. Alguns elementos, muito poucos, não concordavam com a mudança da UNITA. A Operação Baile destinava-se a capturar o Teixeira Martins e a mim. Talvez, na melhor das hipóteses, para estabelecer negociações em situação de vantagem.
"No dia 5 de Outubro de 1970, houve uma operação no Cuito Cuanavale, uma operação conjunta de militares, de polícia, de Flechas, de toda a gente. Nessa operação houve um flecha meu que morreu. Eu costumava ir com eles mas nessa altura estava no PC (Posto de Comando) e recebi uma mensagem de evacuação urgente, num determinado sítio, a meio do rio Cuanavale.Fui num helicóptero. Era um flecha meu que estava gravemente ferido, tinha havido um contacto. Quando eu cheguei ao local eles faziam uma fogueira para referenciar onde estavam, para o helicóptero aterrar. O flecha estava todo ferido, cheio de buracos, e estava agarrado a uma Kalashnikov. Quando me viu, entregou-me a arma que ele tinha capturado ao inimigo e morreu nos meus braços. Na minha sala de operações estava assinalado, no sítio onde ele morreu, o nome dele, Lumai Dala, com uma bandeirinha. Eu estava nessa altura a fazer um briefing a oficiais sul-africanos, oficiais portugueses e polícia. Houve um sul-africano que perguntou o que é que significava Lumai Dala. Expliquei-lhe a situação. O homem tomou conta daquilo e depois ofereceu-me uma chapinha de prata que diz assim: "Lumai Dala, morto em combate. 5 Outubro de 1970." Pus a chapinha na espingarda e andava com a espingarda. Na rua António Maria Cardoso, quem subia a escadaria principal, havia várias lápides de mármore. Uma delas dizia: "Lumai Dala. Morto em combate." Ao cimo, estava uma frase de Salazar: "Havemos de chorar os mortos se os vivos o não merecerem." O Lumai Dala morreu, mas a operação foi positiva. Entretanto, o meu director tinha-me prometido a directoria do campo de prisioneiros de São Nicolau, que não era uma prisão da PIDE, era uma prisão administrativa que, a partir de determinada altura, funcionava mais como um centro de recuperação, até porque não havia grades, não havia nada, até tinha banda de música. Nós mandávamo-los embora e eles diziam: "O que é que vai ser de mim agora, patrão?" Estive a chefiar Carmona e o meu director, São José Lopes, que eu respeito muito, disse-me que já não ia para lá. Vim para cá e fui trabalhar para a Secção Central com o Pereira de Carvalho".
A partir de 1968 existiu mesmo no Cuito Cuanavale uma organização, chamada Centro Conjunto de Apoio Aéreo (CCAA), constituída por oficiais do Exército português e da Força Aérea, oficiais sul-africanos e elementos da PIDE. As Forças Armadas sul-africanas forneciam-nos helicópteros e meios aéreos, forneciam-nos o que era preciso. Os sul-africanos estavam interessados na UNITA, na medida em que a UNITA e a SWAPO trabalhavam em conjunto e nós fazíamos uma espécie de tampão à SWAPO, que tinha de atravessar o Cuando-Cubango, e várias vezes tivemos contactos com os guerrilheiros namibianos. Uma das vezes que fui ferido, foi pela SWAPO: apanhei um estilhaço na mão. Foi uma operação que fizemos em colaboração com os sul-africanos. No Cuando-Cubango, tínhamos postos da PIDE em Serpa Pinto, em Caiundo, Cuangar, Calai, Dirico, Mucusso, Rivungo, Cuito Cuanavale e Mavinga. Tínhamos a colaboração dos caçadores das três coutadas: Kirongozi, Luenge e Mucusso, em que os nossos funcionários e os caçadores guias viviam juntos. Tudo isto em conjunto com a tropa. Tínhamos um batalhão em Serpa Pinto, na Neriquinha uma companhia comandada pelo Vítor Alves, um pelotão reforçado na Luiana e meia-dúzia de gatos-pingados em Mavinga. Os comerciantes, e os elementos da PSP etc. também faziam operações conjuntas com os Flechas. E sempre que havia operações militares, lá iam os Flechas, ou ia um agente da PIDE com um flecha, que às vezes servia de intérprete, e esse flecha colaborava".


Entrevista a Óscar Cardoso ex-agente da DGS

2 comentários:

José Sousa disse...

Olá amiga Maria!
Depois de tanto tempo regressei a postar, pois a saudade já apertava.
Estive lendo este seu post muito interessante, como sempre, a sua formas de nos transmitir as suas belas descargas do que lhe vai na alma. Sou testemunha do que escreveu, pois, também eu fuji de lá em 1975 para não perder a vida! Eu vivia no Kwznza sul, Amboim, Gabela.

Um abração e lhe espero no

http://www.congulolundo.blogspot.com

jorge figueiredo disse...

gostei da narrativa;
eu foi um dos que esteve no Luiana, em 1971/72 trabalhei com os flechas,só tenho pena que o nosso governo não tenha dado a atenção que eles e todos os operacionais que estiveram nesta guerra,incluido nós que fomos enviados para a mesma.Posso acrescentar que só encontrei gente boa e tenho saudades desse tempo,com amizade gostei de ler tal como se tivesse noticias da minha terra